domingo, 16 de outubro de 2005

Publius Vergilius Maro

Há 2075 anos (se as contas tradicionais estiverem certas) nasceu um dos grandes poetas da Antiguidade, aquele que Paul Claudel chamou o maior génio produzido pela humanidade e que mais do que um poeta, foi um profeta de Roma, um "vate", um poeta-profeta. Foi considerado o príncipe dos poetas, mas também o Poeta do Prícipe, pois foi o poeta mais conceituado do seu tempo, mas também foi protegido por Augusto.

Virgílio foi o cantor da tradição, criadora e conservadora da grandeza de Roma. Fez em verso aquilo que Tito Lívio (Pádua, 59 a.C. - ib. 17 d.C.), com o seu Ab Vrbe Condita, tinha feito em prosa. Em Portugal, temo um par que se aproxima deste: João de Barros, com as suas Décadas, e Luís de Camões com Os Lusíadas.

Virgílio nasceu a 15 de Outubro (segundo o calendário romano nos idos de Outubro. Em Março, Maio, Julho e Outubro os idos eram a 15, nos outros oito meses eram a 13), tradicionalmente, no ano de 70 a.C., no seio de uma família modesta, em Andes, perto de Mântua. Por esse motivo era conhecido por “Mantuanus”. Foi Apuleio, no séc. II d.C., que lhe chamou, pela primeira vez, “Mantuanus poeta”, depois com Macróbio, no séc. V d.C., passa a ser chamado apenas “Mantuanus”.

Já Ovídio (43 a.C. – 8 d.C.), in Amores (3. 15. 7), tinha escrito sobre o seu nascimento perto de Mântua:
Mantua Vergilio, gaudet Verona Catullo
Mântua alegra-se com Vergílio e Verona com Catulo.
A origem era frequentement citada quando se fala de algum escritor da Antiguidade. Gaius Valerius Catullus (Catulo, de quem falarei proximamente) era conhecido como o Veronensis, por exemplo, por ter nascido em Verona (c. 87 a.C. - c. 54 a.C.).

A vida de Vergílio decorre numa época muito conturbada da vida da cidade de Roma, entre o fim da República e o início do Principado.

Entre 42 e 39 a.C., Virgílio escreveu a sua primeira obra, que publicou em 39 a.C. Demonstra o seu perfeccionismo pela demora em publicar, pois procurava sempre a forma mais perfeita e nunca estava contente com o que escrevia.

A obra então publicada chama-se Eclogae, isto é, em português, antologia, colectânea, selecção, florilégio. No entanto, a palavra sofreu uma evolução semântica e passou a designar as poesias pastorais, as bucólicas. Por isso, muito mais tarde, “Eclogae” passou a significar “Bucólicas” (tradução actual).

Constituída por 9 bucólicas, não estão dispostas por ordem cronológica, pois, por exemplo, a 9.ª foi escrita antes da 1.ª, que é a que abre a obra. As Eclogae foram um sucesso completo e em 37 a.C. o autor teve que fazer uma reedição onde incluiu mais uma égloga, a décima. As églogas mais conhecidas são a 1.ª e a 4.ª (e também a 2.ª).

Devido ao seu perfeccionismo, Virgílio dedicava-se de corpo e a alma à obra que estava a escrever. De 39 a 29 a.C., dedica-se a compor a sua obra mais perfeita, mas não a mais conhecida, Georgicon (As Geórgicas), poema didáctico sobre os trabalhos agrícolas.

Nestes 10 anos houve uma profunda alteração na vida política. O 2.º triunvirato é dissolvido. Em 36 a.C., Lépido é deposto e em 30 a.C., Marco António suicida-se juntamente com a sua amante. Marco António era casado com Octávia, irmã de Octávio, e repudiou a sua legítima esposa por causa de Cleópatra. Isto era uma ofensa para Octávio e por isso o Senado declarou guerra a Cleópatra. Depois da guerra, Octávio fica como senhor absoluto de Roma e em 27 a.C. o Senado dá-lhe o título de Augusto.

Virgílio também levou 10 anos a compor a Aeneidos (A Eneida), pois morreu em 19 a.C. Deixou o poema incompleto, ou pelo menos, não o deixou como queria.

No ano de 19 a.C., Virgílio empreendeu uma viagem à Grécia pois queria ver os locais onde decorria o início do poema, para poder descrevê-los com exactidão. No entanto, adoeceu em Mégara, no istmo de Corinto. Pressentiu a morte e pediu que o repatriassem, vindo a falecer em 21 de Setembro em Brindes (Brundusium ou Brundisium em latim). Toda a sua vida foi relativamente doente, sofria, principalmente, do fígado. Também sofria muito de dores de cabeça.

Como era um perfeccionista, pediu que queimassem a Eneida. Mas, Augusto não cumpriu esta última vontade de Vergílio. Augusto encarregou um amigo, Lúcio Vário, de publicar o poema. No entanto, deu ordem para publicar o poema exactamente como Virgílio o tinha deixado. Por esse motivo, na Eneida, há vários versos aos quais falta o 2.º hemistíquo, pois Virgílio não teve tempo para os completar.

Também havia versos completos das Geórgicas na Eneida. Foram versos utilizados por ele para encher e que, depois, seriam substituídos. Por ter consciência disso, Virgílio queria que o poema fosse queimado. No entanto, a Eneida só é imperfeita no seu sentido etimológico, isto é, por estar inacabada.

Virgílio foi sepultado junto de uma estrada, aquela que ligava Nápoles a Puzzuoli (em latim, Puteoli). Havia a ornar o seu túmulo um epitáfio que apenas chegou até nós por transmissão indirecta. Este epitáfio terá sido redigido pelo próprio Virgílio, por dois motivos: simplicidade vocabular e pela modéstia, não emitindo qualquer juízo de valor e tem, além disso, uma alusão mitológica que era muito ao gosto de Virgílio.

O epitáfio era composto por um dístico elegíaco, isto é, um hexâmetro dactílico + pentâmetro dactílico:
Mantua me genuit; Calabri rapuere, tenet nunc
Parthenope: cecini pascua, rura, duces

Mântua gerou-me; a Calábria arrebatou-me; agora possui-me
Partenope (Nápoles): cantei as pastagens, os campos, os heróis
O primeiro comentador da obra de Virgílio, Sérvio (Maurus Servius Honoratus, séc. IV – V d.C.), in Vergilii Ainedos Librum primum commentarius, associou as 3 obras publicadas de Virgílio a 3 grandes amigos que teriam tido influência nas respectivas obras:

Asínio Polião terá sugerido a Virgílio que imitasse Teócrito e compusesse as Bucólicas. Mesmo que não seja inteiramente verdade, o que Sérvio diz tem um fundo de verdade.

Ainda segundo Sérvio, foi Mecenas que pediu a Virgílio que ele compusesse as Geórgicas. Mais uma vez, mesmo que não seja inteiramente verdade, o certo é que as Geórgicas favoreciam a política de valorização rural de Mecenas. Tinha havido um êxodo das pessoas dos campos para a cidade. As Geórgicas cantam as vantagens da vida do campo.

Sérvio diz ainda que a Eneida foi sugerida por Augusto. Certo é que a Eneida é um louvor indirecto a Augusto. Este estava tão interessado na sua publicação, que desrespeitou a vontade de um moribundo e mandou publicá-la.

Sabemos que Virgílio escreveu poesia na sua juventude que só apareceu numa colectânea muito mais tarde. Essa colectânea, chamada Appendix Vergiliana é composta por poemas supostamente escritos por Virgílio na sua juventude. Supostamente escritos porque a maior parte não foram compostos por ele. Desta colectânea só um pequeno número de poemas saiu da pena de Virgílio.

No entanto tem um aspecto muito importante: dá-nos a conhecer o movimento cultural em que Virgílio conviveu e, por outro lado, mostra a sua enorme popularidade. Muita gente escrevia poesia para que elas fossem tomadas como sendo de Virgílio.

Na Antiguidade era muito mais apreciada uma boa imitação do que um mau original. Imitar era uma forma de homenagem. Por isso, escreviam à maneira de...

Algumas poesias são mesmo de Virgílio e encontramos um Virgílio diferente das obras publicadas, com veia satírica, que aproximavam estas poesias das “nugae” de Catulo (pequenas composições escritas a propósito de tudo e de nada).

Tal está de acordo com a escola literária de Catulo e à qual, de certa forma, Virgílio pertencia, o Alexandrinismo. Na Eneida há uma simbiose perfeita entre o alexandrinismo e homerismo. Uma das características do alexandrinismo era estas pequenas composições, por vezes corrosivas e cheias de ironias.

Virgílio não era tão virulento quanto Catulo por uma questão de temperamento. No entanto as pessoas associavam Virgílio a Catulo como demonstra o poema acima referido de Ovídio.

No entanto, nos seus poemas de juventude demonstra também a sua ironia. O poema que se segue é uma poesia muito ao gosto dos alexandrinistas, cheia de ironia.
ite hinc, inanes, ite, rhetorum ampullae,
inflata rhoeso non Achaico uerba,
et uos, Selique Tarquitique Varroque,
scholasticorum natio madens pingui
ite hinc, inane cymbalon iuventutis.
tuque, o mearum cura, Sexte, curarum,
uale, Sabine, iam ualete, formosi.
nos ad beatos uela mittimus portus
magni petentes docta dicta Sironis
uitamque ab omni uindicabimus cura.
ite hinc Camenae uos quoque. ite iam sane,
dulces Camenae - nam fatebimur uerum,
dulces fuistis -: et - tamen meas chartas
reuisitote, sed pudenter et raro.
(catalepton V (ca. 50 a. Chr. n.))

Ide-vos daqui, ide, ocos empolamentos de retórica
palavras inchadas com estalhadarço não ático
E vós, o Célio, ó Tarquício, ó Varrão
Corja de pedantes a pingar de gordura
Ide-vos daqui, címbalo louco da minha juventude.
E tu, ó Sexto Sabino, cuidado dos meus cuidados
fica bem: ficai bem meus caros
Nós levantamos ferro em direcção aos pontos prósperos
Procurando doutas doutrinas do grande Sirão
E libertaremos a vida de todos os cuidados.
Ide-vos daqui, Musa; apre! Vós também ide já
Doces Musas (confessaremos a verdade,
fostes doces): e contudo no futuro
visitai de novo os meus escritos, mas discretamente e poucas vezes.
Virgílio pensava dedicar-se à filosofia epicurista. E aqui faz mais uma tentativa e, neste poema, despede-se dos seus amigos. Mas antes, denuncia os excessos da escola asiática de retórica, insultando os seus mestres. É que Virgílio também tentou a retórica, mas faltava-lhe a capacidade de improvisação essencial a um orador.

O discurso retórico do exórdio até ao epílogo. Era, muitas vezes, escrito em casa e memorizado para depois serem proferidas de cor. A memória era muito importante para um orador.

O exórdio e o epílogo eram decorados, as restantes partes (enunciação da tese e prova) eram improvisadas. Ao chegar a casa é que escrevia o que se tinha dita no Fórum, p. ex., Cícero. Por isso, os seus discursos que hoje lemos não são exactamente aqueles que ele proferiu no Fórum. Mas, por motivos vários (políticos, estéticos, etc.), eles podiam alterar aquilo que se tinha proferido. É natural que ao querer escrever o discurso para a posteridade, o orador alterasse o discurso.

Havia 3 escolas de retórica: a ática, a asiática e a de Rodes. Os oradores da escola ática diziam apenas o essencial com um discurso simples e despido de adjectivação. A mesma coisa acontecia com os gestos. A sobriedade das palavras tinha que ter correspondência na sobriedade dos gestos.

A escola asiática situava-se no pólo oposto. Grande exuberância de palavras, sobrecarga de adjectivos, muitas figuras de estilo, muitos gestos, gritos, etc. Hortênsio era um orador da escola asiática a quem Cícero pôs o nome de bailarino.

A escola eclética, de Rodes, era a seguida por Cícero. Era o meio-termo entre as outras duas. Escolhia o que havia de melhor nelas. Procurava o ponto de equilíbrio entre a extrema sobriedade da escola ática e a extrema exuberância da escola asiática.

Ora, Virgílio nunca poderia ser um orador porque não tinha capacidade de improvisação. Ele era um perfeccionista que nunca estava contente com o que escrevia. Suetónio (Vita Vergili) diz que ele tinha a aparência de homem inculto e pouco hábil na conversação:
... in sermone tardissimum eum ac paere indocto similem fuisse

... que ele foi muito inábil na conversação e quase parecia inculto
Um aspecto de camponês, alto e moreno, mas muito tímido, tendo dificuldade em conviver em sociedade. A eloquência não era o seu forte, mas lia os seus versos com uma elegância admirável.

Mas, ainda na juventude, Virgílio escreveu o epitáfio irónico a um lanista (mestre de gladiadores na Roma Antiga). Este lanista, de nome Balista, era o perigo n.º 1, isto é, uma pessoa nada recomendável.

Este epitáfio é um dístico elegíaco. Trata-se de utilizar uma forma nobre para fazer um ataque. Esta desadequação entre a forma e conteúdo é que torna irónico este epitáfio, torna-o numa paródia. Mais uma poesia de carácter alexandrinista (alexandrinismo pós-catuliano).
Monte sub hoc lapidum tegitur Ballista sepultus;
Nocte die tutum carpe, uitaor, iter.

Debaixo deste monte de pedras está sepultado Balista;
De noite e dia, ó viandante, toma o [teu] caminho [em] segurança.
Os alexandrinistas preconizavam pequenas composições poéticas, insurgindo-se contra o comprimento exagerado dos poemas homéricos. Surgiram como reacção contra o homerismo. Virgílio fez a síntese entre o homerismo e o alexandrinismo. A Eneida é um poema longo, mas não tão longo como a Ilíada. Na Eneida não se encontram as fórmulas próprias da composição oral porque os alexandrinistas condenam-nas. Virgílio faz a simbiose, associando dois contrários o que parecia impossível.

O alexandrinismo preconiza a forma trabalhada, o requinte da fórmula. Esta característica está de acordo com o perfeccionismo de Virgílio. O alexandrinismo era erudito, o que também estava de acordo com Virgílio, o erudito dos eruditos.

Expressão sóbria, mas totalmente plena. Dizer o indispensável, mas dizer tudo sem faltar nada. Também os alexandrinistas preconizavam esta característica, que vamos encontra em Virgílio.

Ele foi um autor da época clássica, pelo que tem na sua obra as características fundamentais do classicismo:

- Simetria
- Harmonia
- Equilíbrio

(Texto baseado nos apontamentos tirados, há já bastantes anos, nas aulas de Latim II da Dra. Ana Paula Quintela, na FLUP)