quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

Almeida Garrett

Como não podia deixar de ser, nunca poderia deixar passar em claro a passagem do 150º aniversário da morte de Almeida Garrett, pois para isso já basta as autoridades oficiais, do governo à Câmara Municipal do Porto, deixarem cair quase no esquecimento absoluto esta data.

Por isso, e antes de continuar neste blog a parte II do artigo Humanae litterae, decidi introduzir uma pequena homenagem a Almeida Garrett. E, de entre as várias hipóteses que considerei, pareceu-me ajustado dar a conhecer um texto enterrado nos volumes do jornal O Panorama de 1839 que dava a conhecer a existência de edição das obras que Garret tinha até escrito.

Este texto, não assinado, é bastante interessante por vários motivos. Em primeiro lugar, porque, apesar de ser escrito numa época em que Garret ainda não tinha escrito algumas das suas obras-primas, por exemplo, e só para nomear algumas, Folhas caídas (1853), Frei Luís de Sousa (1844) e Viagens na minha terra (1846), Garret já tinha conquistado um lugar ao sol na literatura portuguesa. Em segundo lugar, este texto explicita de um modo absolutamente claro algumas das características principais do romantismo (diríamos do 1.º romantismo) contrapondo-as às características da literatura clássica.

Numa época em que o romantismo tinha irrompido há pouco na literatura portuguesas, embora D. Branca e Camões sejam de 1826 e 1825, respectivamente, tem que se esperar por meados da década de 30 para se poder começar a falar de literatura romântica em Portugal sem se tratar de um caso isolado (pois entretanto, Herculano publicará a Voz do Profeta e a Harpa do Crente e Castilho, um caso muito especial de romantismo, publicara Os Ciúmes do Bardo e a Noite do Castelo), é interessante ver-se uma argumentação já bastante consolidada, sendo certo que esta argumentação já vinha sendo praticada na Alemanha há mais de 30 anos e em França (apesar de um romantismo tardio) já Hugo tinha escrito o prefácio de Cromwell (1827) e acontecido as guerras de Hernani (1830).

Mas, passemos ao texto em si, publicado no O Panorama, n.º 112, de 22 de Junho de 1839, Vol. III, p. 199-200 (mantive a ortografia da época por achar que a compreensão não é afectada por ela).

Obras de J. B. d’Almeida Garrett – 18 volumes : Prospecto.

Veio-nos á mão um prospecto das obras do Sr. Garret, que se vão reimprimir collectivamente, em um edição de volumes em 12.º, sendo esse prospecto a amostra do typo, e papel da reimpressão, e offerecendo bem assim a lista das obras que entram na collecção, das quaes boa parte é inedita.

Nas obras do Sr. Garrett, como poeta, há, além do merito extraordinario que as distingue, uma circumstancia, que lhes dá o primeiro logar na litteratura portugueza do seculo 19.º, e vem a ser que ellas começam o periodo da transição entre a velha litteratura da eschola, chamada classica, e a da eschola, que denominam romantica, e a que nós chamaos ideal, nacional, e verdadeira. Antes de D. Branca a nossa poesia, moldada pelo typo da poesia franceza e italiana do seculo passado, não era senão um reflexo pallido da luz serena da arte grega, reverberado frouxamente no poetar dos romanos, e ainda mais descorado no da epocha de Luiz 14.º. A influencia da nossa Arcadia, se destruiu os desvarios gongoristicos de seculo 17.º, matou também a nacionalidade e a vida intima da poesia : a arte converteu-se em sciencia, e erudição : os poetas fizeram-se, não nasceram, e por cada poeta inspirado, houve educados pela ferula das poeticas e rhetoricas. Protegidas por metrificação severa, por peloticas de lingua, por tropos collocados em bateria, por estylo pomposo e estudado, por harmonias vaãs e sem pensamento, quantas semsaborias e trivialidades estão aninhadas por esses muitos volumes de versos de meio seculo ! – O padre Macedo, tão acusado e malquisto, por invectivar contra Camões, e escrever o Oriente para contrastar os Lusíadas, não fez mais que resumir e exprimir claramente por theoria e practica o espirito da Arcadia, que a propria Arcadia ou nunca em si entedera, ou nunca ousára declarar. A fórma da arte era o fim da Arcadia e era com as fórmas que Macedo guerreava Camões e era para as fórmas que construia a montanha de gêlo, a que poz nome Oriente. Foi elle quem definiu a chamada restauração da poesia feita pelos poetas do marquez de Pombal ; e os discipulos e admiradores dos arcades, que tão assanhadamente pelejavam com Macedo, nem o entendiam, nem se entendiam ; e por isso na lucta ficaram sempre, e sem excepção, vencidos.

Quando essas luctas cessaram, e Macedo atirou á balança politica a sua penna violenta e mordaz, o cyclo pseudo-poetico da eschola de Diniz estava completo : devia morrer e morreu ; porque a sua missão acabára. A influencia da philosophia litteraria alemaã tinha-se espalhado na Europa, e uma poesia livre e robusta fazia curvar diante do pensamento a fórma, diante do ideal o material, diante do nacional o estranho, diante do poeta a poetica. Foi nesta epocha que o Sr. Garrett, atirado pelas revoluções para as praias do desterro, no vigor da mocidade e do talento, viu de longe passar o saimento das eglogas, dos sonetos, dos dithyrambos, das elegias, e das odes pindaricas, daquellas bemaventuradas odes, sobre cuja tumba, choravam as liras com as bujarronas esvoaçando soltas por mares de louvores, seguidas por um clarão sonoro de buscapés, meio desasado, voando com os pés pelo chão, cósta arriba do Pindo, cousa mui piedosa d’ouvir e ver, e que fazia chorar as pedras. Viu isto de longe o senhor Garrett [que certas cousas só de longe se veem bem, como com tanta pilheria o disse um poeta da eschola arcadiana

Se de perto o não vês, põe-te distante.)

e conheceu que a elle, que nascera poeta, que estava fóra da influencia escholastica, e que via surgir de roda de si a poesia da consciencia e da inspiração, cumpria tomar na litteratura patria, o logar que Scott, Byron, e Crabbe, Goethe, e Schiller e Burger, Lamartine e Soumet, tinham nas litteraturas, ingleza, alemaã, e franceza. D. Branca, e o Camões foram, por certo, o resultado desta convicção. D. Branca é o ideal da edade média portugueza convertido em typo poetico ; Camões o ideal do poeta christão, valente, e generoso, revelado no quadro da longa agonia dos ultimos annos do rei dos poetas modernos. Estes dois poemas, lançados sem discussão preliminar na arena litteraria de Portugal, fizeram estremecer de horror os homens das regras, os homens das poeticas e rhetoricas. E, com effeito, esta apparição não podia ser comprehendida ; porque a transição era repentina, e porque ninguem percebera que as tradições da Arcadia deviam parecer logo que fossem definidas, que ellas o tinham sido, e que as suas rigorosas consequencias se haviam completamente deduzido. Os criticos agarraram-se á linguagem, ao estylo, á metrificação emfim, áquilo de que sabiam – ás fórmas : mas o espirito e o resultado destes dois poemas ficou sem ser percebido, nem calculado, e hoje é que elles se começam verdadeiramente a sentir.

Como todos os escriptos do Sr. Garrett tragam o sello da sua missão regeneradora ; como a influencia delles na litteratura actual se tenha desenvolvido não o podemos examinar aqui ; que a estreiteza deste jornal no-lo veda, e um tal exame equivalera á historia litteraria dos ultimos quinze annos. Tambem de deffeitos, não podemos fallar, nem quizeramos ; que até nisto foi completa a revolução litteraria : os antigos criticos alimentavam-se de podridão, e por isso o seu maior empenho era buscar erros e vicios nas producções de ingenho : hoje a critica, mais generosa, indaga formosuras e meritos para os revelar ao mundo, onde a arte só deve servir para consolar o homem de tantas amarguras que sobre lle entornou a mão mysteriosa da providencia.

Entendemos que a edição das obras do sr. Garrett é um bom serviço que os editores fazem ás letras portuguezas, e que todos os que as amam os devem ajudar em tão honrado proposito. Repeti-lo-hemos ; além do seu merito absoluto, ellas teem o mais valioso ainda de principiarem uma epocha de verdadeira regeneração litteraria.

Este artigo já vai longo, mas não gostaria de deixar de assinalar alguns factos interessantes que se podem dele relevar.

Em primeiro lugar, o reconhecimento do lugar de Garrett como escritor de ruptura com os canônes até predominantes na literatura portuguesa. A esta nova literatura, o autor do texto prefere-lhe chamar “ideal, nacional e verdadeira” em vez de romântica. Os adjectivos “nacional” e “verdadeira” estão muito na essência na concepção de literatura do Romantismo.

Mas, continuado, vemos que a anterior literatura, chamada “clássica” (embora já não o fosse totalmente, pois o neoclassicismo já tinha tido evoluído para o pré-romantismo, embora mantendo-se todo um arcadismo ainda preominante). A essa poesia anterior apenas se reconhece a virtude de ter acabado com o gongorismo (o barroco só foi reabilitado na 2.ª parte do séc. XX). Mas de resto é acusada de ser formal, de ser manietada por retóricas e poéticas normativas, ao contrário da nova poesia livre dessas restrições formais pois vinda de um poeta inspirado.

Esta é uma diferença fundamental entre a poesia neoclássica e o romantismo. A concepção do poeta clássico é extremamente diferente, como se poderá ler, por exemplo, pela leitura da Dissertação Terceira (de que espero voltar a falar de um modo mais completo no quadro da “imitação”) de Correia Garção lida a 7 de Novembro de 1757 na sessão da Arcádia, onde se defendiam a imitação (que não o plágio, são coisas bem diferentes). O poeta só pode ser bom se seguir o caminho dos “antigos poetas e oradores”. Mas seguir o caminho não é traduzir servilmente a Antiguidade.

Esta concepção de poesia, indicava que ninguém poderia chegar a poeta senão pelo estudo. Ora, o romantismo acreditava no génio individual – será preciso lembrar o poema L’albatros de Naudelaire? – pelo que tal noção de poesia só poderia ser recusada. Por isso fala em poetas que “se fizeram” (os clássicos) contra aqueles que “nasceram” poetas (naturalmente superiores).

Muito mais se poderia dizer deste texto, como por exemplo o porquê da valorização de D. Branca (idade média) ou de Camões (tema do poeta cristão) também típicos da literatura romântica da época, e não pretendendo fazer um texto académico, apenas tive o objectivo de homenagear Almeida Garrett divulgando um texto de crítica coeva à obra que o escritor tinha produzido até então, mostrando a importância com que o consideravam já e que mantece depois (embora o tratamento que receba nos programas do ensino secundário seja extremamente redutor, fazendo com que seja detestado pela grande maioria dos alunos).

1 comentário:

Anónimo disse...

ler todo o blog, muito bom