sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

Os 150 anos de Cesário Verde

Quando em Dezembro do ano passado se passaram os 150 anos da morte de Almeida Garrett houve quem criticasse (e com justiça) a Câmara Municipal do Porto, e não só, por praticamente ignorar essa data. Ora, hoje passam 150 anos sobre o nascimento de um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos: Cesário Verde. Sinceramente não sei se alguém na Câmara Municipal de Lisboa se lembrou desta data, mas se o não fez deveria fazê-lo, pois poeta foi um dos grandes poetas da cidade Lisboa.
José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa a 25 de Fevereiro de 1855, no dia consagrado pela Igreja Católica a São Cesário, filho de um casal abastado de comerciantes, com loja de ferragens aberta ao público na Rua dos Fanqueiros. Para além disso, o pai de Cesário Verde herdou de um tio uma quinta em Linda-a-Pastora. Naturalmente, toda a educação do futuro poeta foi orientada segundo os projectos familiares, tendo aos 17 anos iniciado a sua carreira profissional na loja do pai.
E quanto às letras? Como terá surgido a vocação? Sabemos apenas que em 1873 se matriculou como aluno voluntário no Curso Superior de Letras. O curso, se é que o seguiu, pelo menos não fez os exames, não teve qualquer influência na sua vida profissional nem na sua obra. Todavia, foi na frequência deste curso que encontrou Silva Pinto, que ficou seu amigo para toda a vida. A sua produção poética estendeu-se de 1873 até à sua morte em 1886, isto é, 13 breve anos. Mas foi quanto bastou para ser um dos maiores poetas portugueses dos últimos 150 anos.
Cesário Verde não publicou qualquer livro em vida. Os seus primeiros poemas publicados (3) foram-no no Diário de Notícias, por mão de Eduardo Coelho, director do jornal, que tinha sido antigo caixeiro do pai de Cesário. Por sua vez, Silva Pinto publica mais alguns poemas no portuense Diário da Tarde.
Em 1873 ou 74, Cesário teria projectado a publicação de um livro intitulado Cânticos do Realismo ou Ecos do Realismo. Todavia, este projecto não foi para a frente. É que, ao contrário do que acontece hoje, a sua obra sofreu de indiferença geral ou mesmo de incompreensão. Os seus contemporâneos não tinham uma opinião muito elogiosa sobre ela.
Teófilo Braga, referindo-se ao poema Esplêndida, disse “que um poeta amante e moderno devia ser trabalhador e não devia rebaixar-se assim”. E porquê? Este poema, publicado em 22 de Março de 1874, termina assim:
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
E aos almoços magníficos do Mata
Prefiriria ir, fardado, aí
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti
Formosa aristocrata.
Nunca o positivista Teófilo poderia suportar tal. Todavia, neste poema, não se pode admitir uma leitura do sujeito poético em moldes românticos. Há que assumir o fingimento poético, este sujeito não é para ser lido como projecção do autor. Tal não foi, obviamente, compreendido por Teófilo, que estabelece uma identidade entre autor/sujeito poético. Ora, esta relação pode existir ou não, mas Teófilo pensava ainda em moldes românticos.
Mas também Ramalho Ortigão n’As Farpas o critica vivamente, aconselhando-o a tornar-se “menos verde e mais Cesário”. Fialho de Almeida também não o poupou. No entanto, Cesário reconciliar-se-ia mais tarde quer com Ramalho quer com Fialho.
De notar que o próprio Cesário Verde era republicano, positivista e agnóstico, e que frequentemente integra a questão social nos seus poemas. Mas a ideia que imperava na época do que a poesia deveria ser não se coadunava com a poesia de Cesário que, por exemplo, retratava o quotidiano da cidade, as pessoas, profissões ou lugares de uma forma que era considerada pouco poética. O mesmo poeta que escreveu Esplêndida, escreveu Deslumbramentos, publicado em Fevereiro de 1875 no Mosaico de Coimbra, que termina assim:
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!
Este passo parece um reflexo da ideia anteriana da poesia como Voz da Revolução e da retoma da função social da poesia da 1.ª geração romântica que Antero fez e que se tinha perdido, na sua maior parte, com o Ultra-romantismo.
De qualquer modo, a indiferença e a incompreensão com que a sua obra foi acolhida, mesmo por aqueles que politicamente lhe estavam mais próximos, provocaram-lhe outras decepções. Por exemplo, Teófilo Braga não o incluiu numa antologia de poesia, Parnaso Português Moderno (1877), antologia essa que representaria, supostamente, as novas tendências da poesia. Aliás, mais tarde, na sua obra As modernas ideias na Literatura Portuguesa (1892), Teófilo volta a não referir Cesário Verde.
A sua poesia reflecte frequentemente esta decepção pela incompreensão da sua obra (Contrariedades):
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.
(…)
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Todavia, também não admira que a obra de Cesário não tivesse tido uma boa recepção: não publicou livros em vida, morreu jovem, a sua obra foge a qualquer classificação muito rígida, não optou exclusivamente por qualquer escola. Deste modo a sua poesia é caracterizada como realista, mas também como simbolista, parnasiana, pré-modernista, romântica e até surrealista (avant la lettre, é claro).
Por outro lado, temos que ver a situação particular do poeta. Cesário era um empregado do comércio que se dedicava à poesia. Por esse motivo, não pertencia aos círculos literários da época, o que também não facilitou a sua recepção. Depois da sua morte, em 19 de Julho de 1886, com apenas 31 anos, o seu amigo Silva Pinto, a expensas suas, fez publicar cerca de 50% das suas poesias, numa edição não comercial de 200 exemplares, segundo um critério editorial ainda hoje discutido (terá sido do poeta ou exclusivamente de Silva Pinto).
A poesia de Cesário é redescoberta no séc. XX e influencia o modernismo bem como grande parte da poesia do século. Fernando Pessoa, na sua poesia, através de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos considera-o como um dos seus mestres. Mas Pessoa em textos teóricos também o considera como mestre e precursor. Assim num texto sem data (publicado em Colóquio-Letras, n.º 8, Julho de 1972 e transcrito António Quadros, Páginas sobre Literatura e Estética, Europa-América), Pessoa escreve:
Houve em Portugal, no século dezanove, três poetas, e três somente, a quem legitimamente compete a designação de mestres. São eles, por ordem de idades, Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. Com a excepção de Antero, todavia dubitativamente aceite e extremamente combatido, coube a todos os três a sorte normal dos mestres – a incompreensão em vida, nos mesmos (como em Byron, derivando de Wordsworth e combatendo-o) sobre quem exerceram influência.
Num outro texto, datado de 11-11-1934, publicado na mesma revista e transcrito na mesmo livro, Pessoa volta a escrever:
O segundo [Cesário Verde] ensinou a observar em verso; descobriu-nos a verdade de que o ser cego, ainda que Homero em lenda o fosse e Milton em verdade se tornasse, não é qualidade necessária a quem faz poemas.
Num texto presumivelmente datado de 1916 e transcrito por António Quadros (op. cit.), Pessoa considera Cesário como um precursor do Sensacionismo:
[O Sensacionismo] Tem só 3 poetas e tem um precursor inconsciente. Esboçou-o levemente, sem querer, Cesário Verde.
A poesia de Cesário tem presentes alguns dos objectivos da poética de Antero, como a ligação do lirismo à ideia de justiça. No entanto, esta ligação faz-se de um modo diferente, pois Cesário está contaminado pela técnica analítica do romance naturalista. Cesário é essencialmente o poeta da observação, não das questões gerais.

Por outro lado, Cesário é anti-sentimentalista pois sofre uma forte influência do parnasianismo (por exemplo, procura o tom neutro, não exaltado ou veemente dos românticos, próprio dessa poética), mas não é um parnasiano, pois ao lado descritivista ele alia ao formalismo à intervenção social e as condições sociais (os parnasianos defendiam o indiferentismo perante o social e a Arte pela Arte).

Muitos outros temas das poesia de Cesário poderiam ser abordadas: a poetização do real, o tempo e a morte, a imagética feminina, o binómio cidade/campo, mas não foi o meu objectivo neste artigo, pois não pretendi com esta breve exposição explicar as características principais da poesia de Cesário Verde, nem sequer em ser original, mas apenas evocar o poeta incompreendido pelos seus contemporâneos e a quem a posteridade lhe concedeu, muito justamente, uma fama muito superior àquela que teve em vida.
De muito dos poetas mais lidos naqueles tempos, como por exemplo, Tomás Ribeiro ou Pinheiro Chagas,  se lê alguma coisa regularmente hoje em dia? De personagens importantes no mundo da literatura da época como Teófilo Braga, o que resta hoje?
Cesário, na minha opinião, juntamente com Camilo Pessanha e Fernando Pessoa forma a  trindade maior dos poetas portugueses dos últimos 150 anos. Embora Portugal tenha tido outros excelentes poetas durante este tempo, todos esse não jogam (e aí vai uma metáfora futebolística) na mesma divisão.