quarta-feira, 1 de março de 2006

Vergílio Ferreira

Faz hoje dez anos que morreu Vergílio Ferreira (obrigado ao Francisco por se ter lembrado disso). Para mim, e é apenas a minha opinião, Vergílio Ferreira escreveu um dos melhores romances portugueses dos últimos 50 anos: Para Sempre.

Só não digo que é o melhor porque, muito naturalmente, não li toda, nem sequer uma parte substancial, da ficção portuguesa desse período de tempo - embora tenha lido bastante, há muito coisa que ficou por ler (e nos últimos tempos tenho lido pouca ficção em prosa, virei-me mais para a linguística e a poesia).

«Pela clareira da porta, vejo-o, o senhor Paixão está sozinho à mesa, tem os olhos baixos. Está concentrado aplicado, é um trabalho minucioso, aplicado ao manejo do talher, nem nos olha. Estamos os dois alinhados e eu tenho a tigela ofertada nas duas mãos. Então o senhor Paixão ergeu os olhos
- Está aqui o Paulinho, Carlos, trouxe-te uma marmelada
ergeu os olhos para nós. Eram uns olhos congestionados de uma paixão que o convulsionava por dentro, tinha uma cabeleira fulva alteada na fronte e aos anéis. A senhora Guilhermina, um sorriso grande abrindo lentamente pelas gengivas todas e depois disse em voz abafada
- O senhor Carlos Paixão
e eu estava ali com a marmelada. Os três fitados uns nos outros, o senhor Paixão sério, os olhos ardentes de uma devoração interior. Depois estendeu as duas mãos para mim, tomou-me a tigela, colocou-a na mesa, um pouco de lado, suspendendo-a brevemente em quatro dedos litúrgicos. Por uma ponte ergeu devagar o papel vegetal, olhava intenso, o olho em fogo, a senhora Guilhermina mudou-lhe o prato subtilmente. Ele então cortou uma pequena película de marmelada, estendeu-a sintética no prato. Ficou assim a olhá-la algum tempo, nós agurdávamos. Sobretudo a senhora Guilhermina - que iria o filho dizer? E ele disse
- Um pouco escura
e ficámos à espera de mais. Estávamos todos em silêncio, o senhor Paixão concentrado como se fosse comungar, murmurou ainda
- Em fins de Setembro
deve-se colher o marmelo em fins de Setembro. Deve-se colher quase maduro. Não ficar muito tempo ao lume. Não se expor ao ar.
Depois retirou uma partícula do prato, levou-a à boca devagar. A boca remoía a partícula, tentava extrair-lhe a essência oculta do sabor. E por fim engoliu-a já sem vida, como quem enterra um morto.
- Pouco saborosa. Pouca acidez. Não se deve cozer o marmelo em água, mas em vapor. Mãe, o café.»
Vergílio Ferreira, Para Sempre, 10.ª ed., Bertrand Editora, pp. 58-59