quarta-feira, 30 de novembro de 2005

O supra-Camões

Faz exactamente hoje 70 anos que morreu Fernando Pessoa numa cama do Hospital de S. Luís dos Franceses em Lisboa.

Nascido a 13 de Junho de 1888, também em Lisboa, Pessoa foi, para mim, o maior poeta português do século XX, embora possa haver quem discorde desta opinião, por exemplo, ouvi uma vez Álvaro Cunhal, em entrevista, a dizer que nunca tinha gostado muito da poesia de Pessoa (o que também acho natural, basta ver a concepção de arte de Cunhal e as suas discusões sobre isso com José Régio na Seara Nova em 1939). Não posso dizer que foi o maior poeta mundial do séc. XX porque, pura e simplesmente, me faltam conhecimentos para isso. Mas, no que respeita a Portugal não tenho dúvidas, apesar dos muitos e excelentes poetas do séc. XX e, do resto do mundo, também, daqueles que conheço, poucos se podem comparar a ele. E, hélas, Pessoa também não recebeu o Prémio Nobel (mas aí está em boa companhia).

Fernando Pessoa, apesar de pouco ter publicado em vida (mais propriamente, de pouco ter publicado em livro), tinha uma confiança absoluta no seu valor e na validade da sua obra, que mereceria até o sacrifício da sua vida sentimental.

Em 1912, ele escreveu uma série de artigos, na revista "A Águia", órgão do movimento Renascença Portuguesa, sobre a nova poesia portuguesa que estaria, segundo ele, então a despontar. Depois de comparar, segundo ele, os períodos dourados das literaturas inglesa (o isabelino até à queda de Cromwell) e francesa (da Revolução francesa até à Comuna de Paris), Pessoa chega à conclusão que a poesia portuguesa da época está mais ao menos na mesma situação que permitiria um período dourado:
A analogia é absoluta. Temos, primeiro, a nota principal da completa nacionalidade e novidade do movimento. Temos, depois, o caso de se tratar de uma corrente literária contendo poetas de indiscutível valor. E note-se - para o caso de se argumentar que nenhum Shakespeare nem Vítor Hugo apareceu ainda na corrente literária portuguesa - que esta corrente vai ainda no princípio do seu princípio, gradualmente, porém, tornando-se mais firme, mais nítida, mais complexa. E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito próximo a ruidosa confirmação deste deduzidíssimo asserto? [...]
Pode objectar-se, além de muita coisa desdenhável num artigo que tem de não ser longo, que o actual momento político não parece de ordem a gerar génios poéticos supremos, de reles e mesquinho que é. Mas é precisamente por isso que mais concluível se nos afigura o próximo aparecer de um supra-Camões na nossa terra. [...] Porque a corrente literária, como vimos, precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos sinal de renascença na vida pública, se a analogia nos manda que vejamos apenas uma, duas ou três gerações depois do auge da corrente literária?
É óbvio que Pessoa não afirma que seria ele o "supra-Camões", mas, a posteriori, quase que podemos dizer que estava a desenhar um fato à sua medida. Interessante é também a parte final deste conjunto de artigos:
Tirem-se, rapidamente, as tónicas conclusões finais. São três. A primeira é que para Portugal se prepara um ressurgimento assombroso, um período de criação literária e social como poucos o mundo tem tido. Durante o nosso raciocínio deve o leitor ter reparado que a analogia do nosso período é mais com o grande período inglês do que com o francês. Tudo indica, portanto, que o nosso será, como aquele, maximamente criador. Paralelamente se conclui o breve aparecimento na nossa terra do tal supra-Camões. Supra-Camões? A frase é humilde e acanhada. A analogia impõe mais- Diga-se «de um Shakespeare» e dê-se por testemunha o raciocínio, já que não é citável o futuro. A segunda conclusão é que, tendo o movimento literário português nascido e acompanhado o movimento republicano, é dentro do republicanismo, e pelo republicanismo, que está, e será, o glorioso futuro deduzido. São duas faces do mesmo fenómeno criador. Fixemos isto: ser monárquico é, hoje, em Portugal, ser traidor à alma nacional e ao futuro da Pátria Portuguesa. A terceira conclusão é que o republicanismo que fará a glória da nossa terra e por quem novos elementos civilizacionais serão criados, não é o actual, desnacionalizado, idiota e corrupto, do tripartido republicano. De modo que é bom fixar isto, também: que ser monárquico é ser traidor à alma nacional, ser correligionário do Sr. Afonso Costa, do Sr. Brito Camacho , ou do Sr. António José de Almeida, assim como de vária horrorosa subgente sindicalista, socialista e outras coisas, representa paralela e equivalente traição. O espírito de tudo isso é absolutamente contrário do espírito da nova corrente literária. Tudo ali é improtado do estrangeiro, tudo é sem elevação nem grandeza, popular com o que há de mais Mouraria na popularidade. Para nada de morte lhes faltar, nem antitradicionais são: herdaram cuidadosamente os métodos de despotismo, de corrupção e de mentira que a monarquia tão como seus amou. [...]
Fernando Pessoa nunca gostou particularmente da 1.ª República nem dos seus principais protagonistas. O futuro glorioso de Portugal prognosticado por Pessoa ainda não aconteceu, mas o brilho da obra que produziu, esse ninguém o pode tirar.

Post scriptum: As citações do artigo de Pessoa publicado in A Águia, foram retiradas do livro de António Quadros, Textos de Intervenção Social e Cultural - A Ficção dos heterónimos, Europa-América.

domingo, 16 de outubro de 2005

Publius Vergilius Maro

Há 2075 anos (se as contas tradicionais estiverem certas) nasceu um dos grandes poetas da Antiguidade, aquele que Paul Claudel chamou o maior génio produzido pela humanidade e que mais do que um poeta, foi um profeta de Roma, um "vate", um poeta-profeta. Foi considerado o príncipe dos poetas, mas também o Poeta do Prícipe, pois foi o poeta mais conceituado do seu tempo, mas também foi protegido por Augusto.

Virgílio foi o cantor da tradição, criadora e conservadora da grandeza de Roma. Fez em verso aquilo que Tito Lívio (Pádua, 59 a.C. - ib. 17 d.C.), com o seu Ab Vrbe Condita, tinha feito em prosa. Em Portugal, temo um par que se aproxima deste: João de Barros, com as suas Décadas, e Luís de Camões com Os Lusíadas.

Virgílio nasceu a 15 de Outubro (segundo o calendário romano nos idos de Outubro. Em Março, Maio, Julho e Outubro os idos eram a 15, nos outros oito meses eram a 13), tradicionalmente, no ano de 70 a.C., no seio de uma família modesta, em Andes, perto de Mântua. Por esse motivo era conhecido por “Mantuanus”. Foi Apuleio, no séc. II d.C., que lhe chamou, pela primeira vez, “Mantuanus poeta”, depois com Macróbio, no séc. V d.C., passa a ser chamado apenas “Mantuanus”.

Já Ovídio (43 a.C. – 8 d.C.), in Amores (3. 15. 7), tinha escrito sobre o seu nascimento perto de Mântua:
Mantua Vergilio, gaudet Verona Catullo
Mântua alegra-se com Vergílio e Verona com Catulo.
A origem era frequentement citada quando se fala de algum escritor da Antiguidade. Gaius Valerius Catullus (Catulo, de quem falarei proximamente) era conhecido como o Veronensis, por exemplo, por ter nascido em Verona (c. 87 a.C. - c. 54 a.C.).

A vida de Vergílio decorre numa época muito conturbada da vida da cidade de Roma, entre o fim da República e o início do Principado.

Entre 42 e 39 a.C., Virgílio escreveu a sua primeira obra, que publicou em 39 a.C. Demonstra o seu perfeccionismo pela demora em publicar, pois procurava sempre a forma mais perfeita e nunca estava contente com o que escrevia.

A obra então publicada chama-se Eclogae, isto é, em português, antologia, colectânea, selecção, florilégio. No entanto, a palavra sofreu uma evolução semântica e passou a designar as poesias pastorais, as bucólicas. Por isso, muito mais tarde, “Eclogae” passou a significar “Bucólicas” (tradução actual).

Constituída por 9 bucólicas, não estão dispostas por ordem cronológica, pois, por exemplo, a 9.ª foi escrita antes da 1.ª, que é a que abre a obra. As Eclogae foram um sucesso completo e em 37 a.C. o autor teve que fazer uma reedição onde incluiu mais uma égloga, a décima. As églogas mais conhecidas são a 1.ª e a 4.ª (e também a 2.ª).

Devido ao seu perfeccionismo, Virgílio dedicava-se de corpo e a alma à obra que estava a escrever. De 39 a 29 a.C., dedica-se a compor a sua obra mais perfeita, mas não a mais conhecida, Georgicon (As Geórgicas), poema didáctico sobre os trabalhos agrícolas.

Nestes 10 anos houve uma profunda alteração na vida política. O 2.º triunvirato é dissolvido. Em 36 a.C., Lépido é deposto e em 30 a.C., Marco António suicida-se juntamente com a sua amante. Marco António era casado com Octávia, irmã de Octávio, e repudiou a sua legítima esposa por causa de Cleópatra. Isto era uma ofensa para Octávio e por isso o Senado declarou guerra a Cleópatra. Depois da guerra, Octávio fica como senhor absoluto de Roma e em 27 a.C. o Senado dá-lhe o título de Augusto.

Virgílio também levou 10 anos a compor a Aeneidos (A Eneida), pois morreu em 19 a.C. Deixou o poema incompleto, ou pelo menos, não o deixou como queria.

No ano de 19 a.C., Virgílio empreendeu uma viagem à Grécia pois queria ver os locais onde decorria o início do poema, para poder descrevê-los com exactidão. No entanto, adoeceu em Mégara, no istmo de Corinto. Pressentiu a morte e pediu que o repatriassem, vindo a falecer em 21 de Setembro em Brindes (Brundusium ou Brundisium em latim). Toda a sua vida foi relativamente doente, sofria, principalmente, do fígado. Também sofria muito de dores de cabeça.

Como era um perfeccionista, pediu que queimassem a Eneida. Mas, Augusto não cumpriu esta última vontade de Vergílio. Augusto encarregou um amigo, Lúcio Vário, de publicar o poema. No entanto, deu ordem para publicar o poema exactamente como Virgílio o tinha deixado. Por esse motivo, na Eneida, há vários versos aos quais falta o 2.º hemistíquo, pois Virgílio não teve tempo para os completar.

Também havia versos completos das Geórgicas na Eneida. Foram versos utilizados por ele para encher e que, depois, seriam substituídos. Por ter consciência disso, Virgílio queria que o poema fosse queimado. No entanto, a Eneida só é imperfeita no seu sentido etimológico, isto é, por estar inacabada.

Virgílio foi sepultado junto de uma estrada, aquela que ligava Nápoles a Puzzuoli (em latim, Puteoli). Havia a ornar o seu túmulo um epitáfio que apenas chegou até nós por transmissão indirecta. Este epitáfio terá sido redigido pelo próprio Virgílio, por dois motivos: simplicidade vocabular e pela modéstia, não emitindo qualquer juízo de valor e tem, além disso, uma alusão mitológica que era muito ao gosto de Virgílio.

O epitáfio era composto por um dístico elegíaco, isto é, um hexâmetro dactílico + pentâmetro dactílico:
Mantua me genuit; Calabri rapuere, tenet nunc
Parthenope: cecini pascua, rura, duces

Mântua gerou-me; a Calábria arrebatou-me; agora possui-me
Partenope (Nápoles): cantei as pastagens, os campos, os heróis
O primeiro comentador da obra de Virgílio, Sérvio (Maurus Servius Honoratus, séc. IV – V d.C.), in Vergilii Ainedos Librum primum commentarius, associou as 3 obras publicadas de Virgílio a 3 grandes amigos que teriam tido influência nas respectivas obras:

Asínio Polião terá sugerido a Virgílio que imitasse Teócrito e compusesse as Bucólicas. Mesmo que não seja inteiramente verdade, o que Sérvio diz tem um fundo de verdade.

Ainda segundo Sérvio, foi Mecenas que pediu a Virgílio que ele compusesse as Geórgicas. Mais uma vez, mesmo que não seja inteiramente verdade, o certo é que as Geórgicas favoreciam a política de valorização rural de Mecenas. Tinha havido um êxodo das pessoas dos campos para a cidade. As Geórgicas cantam as vantagens da vida do campo.

Sérvio diz ainda que a Eneida foi sugerida por Augusto. Certo é que a Eneida é um louvor indirecto a Augusto. Este estava tão interessado na sua publicação, que desrespeitou a vontade de um moribundo e mandou publicá-la.

Sabemos que Virgílio escreveu poesia na sua juventude que só apareceu numa colectânea muito mais tarde. Essa colectânea, chamada Appendix Vergiliana é composta por poemas supostamente escritos por Virgílio na sua juventude. Supostamente escritos porque a maior parte não foram compostos por ele. Desta colectânea só um pequeno número de poemas saiu da pena de Virgílio.

No entanto tem um aspecto muito importante: dá-nos a conhecer o movimento cultural em que Virgílio conviveu e, por outro lado, mostra a sua enorme popularidade. Muita gente escrevia poesia para que elas fossem tomadas como sendo de Virgílio.

Na Antiguidade era muito mais apreciada uma boa imitação do que um mau original. Imitar era uma forma de homenagem. Por isso, escreviam à maneira de...

Algumas poesias são mesmo de Virgílio e encontramos um Virgílio diferente das obras publicadas, com veia satírica, que aproximavam estas poesias das “nugae” de Catulo (pequenas composições escritas a propósito de tudo e de nada).

Tal está de acordo com a escola literária de Catulo e à qual, de certa forma, Virgílio pertencia, o Alexandrinismo. Na Eneida há uma simbiose perfeita entre o alexandrinismo e homerismo. Uma das características do alexandrinismo era estas pequenas composições, por vezes corrosivas e cheias de ironias.

Virgílio não era tão virulento quanto Catulo por uma questão de temperamento. No entanto as pessoas associavam Virgílio a Catulo como demonstra o poema acima referido de Ovídio.

No entanto, nos seus poemas de juventude demonstra também a sua ironia. O poema que se segue é uma poesia muito ao gosto dos alexandrinistas, cheia de ironia.
ite hinc, inanes, ite, rhetorum ampullae,
inflata rhoeso non Achaico uerba,
et uos, Selique Tarquitique Varroque,
scholasticorum natio madens pingui
ite hinc, inane cymbalon iuventutis.
tuque, o mearum cura, Sexte, curarum,
uale, Sabine, iam ualete, formosi.
nos ad beatos uela mittimus portus
magni petentes docta dicta Sironis
uitamque ab omni uindicabimus cura.
ite hinc Camenae uos quoque. ite iam sane,
dulces Camenae - nam fatebimur uerum,
dulces fuistis -: et - tamen meas chartas
reuisitote, sed pudenter et raro.
(catalepton V (ca. 50 a. Chr. n.))

Ide-vos daqui, ide, ocos empolamentos de retórica
palavras inchadas com estalhadarço não ático
E vós, o Célio, ó Tarquício, ó Varrão
Corja de pedantes a pingar de gordura
Ide-vos daqui, címbalo louco da minha juventude.
E tu, ó Sexto Sabino, cuidado dos meus cuidados
fica bem: ficai bem meus caros
Nós levantamos ferro em direcção aos pontos prósperos
Procurando doutas doutrinas do grande Sirão
E libertaremos a vida de todos os cuidados.
Ide-vos daqui, Musa; apre! Vós também ide já
Doces Musas (confessaremos a verdade,
fostes doces): e contudo no futuro
visitai de novo os meus escritos, mas discretamente e poucas vezes.
Virgílio pensava dedicar-se à filosofia epicurista. E aqui faz mais uma tentativa e, neste poema, despede-se dos seus amigos. Mas antes, denuncia os excessos da escola asiática de retórica, insultando os seus mestres. É que Virgílio também tentou a retórica, mas faltava-lhe a capacidade de improvisação essencial a um orador.

O discurso retórico do exórdio até ao epílogo. Era, muitas vezes, escrito em casa e memorizado para depois serem proferidas de cor. A memória era muito importante para um orador.

O exórdio e o epílogo eram decorados, as restantes partes (enunciação da tese e prova) eram improvisadas. Ao chegar a casa é que escrevia o que se tinha dita no Fórum, p. ex., Cícero. Por isso, os seus discursos que hoje lemos não são exactamente aqueles que ele proferiu no Fórum. Mas, por motivos vários (políticos, estéticos, etc.), eles podiam alterar aquilo que se tinha proferido. É natural que ao querer escrever o discurso para a posteridade, o orador alterasse o discurso.

Havia 3 escolas de retórica: a ática, a asiática e a de Rodes. Os oradores da escola ática diziam apenas o essencial com um discurso simples e despido de adjectivação. A mesma coisa acontecia com os gestos. A sobriedade das palavras tinha que ter correspondência na sobriedade dos gestos.

A escola asiática situava-se no pólo oposto. Grande exuberância de palavras, sobrecarga de adjectivos, muitas figuras de estilo, muitos gestos, gritos, etc. Hortênsio era um orador da escola asiática a quem Cícero pôs o nome de bailarino.

A escola eclética, de Rodes, era a seguida por Cícero. Era o meio-termo entre as outras duas. Escolhia o que havia de melhor nelas. Procurava o ponto de equilíbrio entre a extrema sobriedade da escola ática e a extrema exuberância da escola asiática.

Ora, Virgílio nunca poderia ser um orador porque não tinha capacidade de improvisação. Ele era um perfeccionista que nunca estava contente com o que escrevia. Suetónio (Vita Vergili) diz que ele tinha a aparência de homem inculto e pouco hábil na conversação:
... in sermone tardissimum eum ac paere indocto similem fuisse

... que ele foi muito inábil na conversação e quase parecia inculto
Um aspecto de camponês, alto e moreno, mas muito tímido, tendo dificuldade em conviver em sociedade. A eloquência não era o seu forte, mas lia os seus versos com uma elegância admirável.

Mas, ainda na juventude, Virgílio escreveu o epitáfio irónico a um lanista (mestre de gladiadores na Roma Antiga). Este lanista, de nome Balista, era o perigo n.º 1, isto é, uma pessoa nada recomendável.

Este epitáfio é um dístico elegíaco. Trata-se de utilizar uma forma nobre para fazer um ataque. Esta desadequação entre a forma e conteúdo é que torna irónico este epitáfio, torna-o numa paródia. Mais uma poesia de carácter alexandrinista (alexandrinismo pós-catuliano).
Monte sub hoc lapidum tegitur Ballista sepultus;
Nocte die tutum carpe, uitaor, iter.

Debaixo deste monte de pedras está sepultado Balista;
De noite e dia, ó viandante, toma o [teu] caminho [em] segurança.
Os alexandrinistas preconizavam pequenas composições poéticas, insurgindo-se contra o comprimento exagerado dos poemas homéricos. Surgiram como reacção contra o homerismo. Virgílio fez a síntese entre o homerismo e o alexandrinismo. A Eneida é um poema longo, mas não tão longo como a Ilíada. Na Eneida não se encontram as fórmulas próprias da composição oral porque os alexandrinistas condenam-nas. Virgílio faz a simbiose, associando dois contrários o que parecia impossível.

O alexandrinismo preconiza a forma trabalhada, o requinte da fórmula. Esta característica está de acordo com o perfeccionismo de Virgílio. O alexandrinismo era erudito, o que também estava de acordo com Virgílio, o erudito dos eruditos.

Expressão sóbria, mas totalmente plena. Dizer o indispensável, mas dizer tudo sem faltar nada. Também os alexandrinistas preconizavam esta característica, que vamos encontra em Virgílio.

Ele foi um autor da época clássica, pelo que tem na sua obra as características fundamentais do classicismo:

- Simetria
- Harmonia
- Equilíbrio

(Texto baseado nos apontamentos tirados, há já bastantes anos, nas aulas de Latim II da Dra. Ana Paula Quintela, na FLUP)

sábado, 9 de abril de 2005

Charles Baudelaire

A 9 (ou, segundo alguns, a 7) de Abril, nasceu em Paris Charles Baudelaire, o "primeiro maldito" segundo Verlaine ou o "grande vidente" para Rimbaud. Pai espiritual de poetas de várias escolas literárias que se lhe seguiram, influenciou grande parte da literatura do séc. XIX e mesmo do início do séc. XX em França, mas não só (em Portugal por exemplo).

Mas o que o tornou célebre, foi o processo originado pela publicação do seu livro "Les fleurs du mal", por atentado aos bons costumes e ataques à religião, que acabou na condenação pelo tribunal de Paris, a 20 de Agosto de 1857, a pagar pesadas multas e ordenada a supressão de 6 poemas considerados obscenos, embora a as multas tenham sido posteriormente fortemente reduzidas. Mas Baudelaire foi reabilitado definitivamente em Justiça em 31 de Maio de 1949 (sim, 1949, não é engano), por acórdão da Cour de Cassation (o Supremo Tribunal de Justiça francês).

Mas, mais do que dados biográficos de Baudelaire, o mais importante é a sua poesia. E entre os seus poemas mais conhecidos está "L'albatros", onde Baudelaire declara a sua concepção de "poeta", uma concepção marcadamente romântica, de ser excepcional de mal como mundo, um ser incompreendido.

L'ALBATROS

Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
La navire glissant sur les gouffres amers.

À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poëte est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu de huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.

Voltarei a Baudelaire em breve.

sexta-feira, 18 de março de 2005

Em defesa do "Velho do Restelo"

Não deve haver na literatura portuguesa personagem mais difamada. Por tudo e por nada chama-se a alguém "Velho do Restelo": "és um velho do Restelo", "só os velhos do Restelo é que pensam assim", "os velhos do Restelo do costume" e por aí fora....

Ou seja, o Velho do Restelo surge como metáfora, comparação, símbolo, epíteto (eu sei lá..., escolham mais algumas figuras de estilo) daqueles que, supostamente, são "botas-de-elástico", "retrógados", "inimigos do progressos", etc..., etc..., etc...

No entanto, esta reputação é de todo imerecida e - não tendo eu feito qualquer investigação sobre o assunto e, por isso, não sabendo da origem da expressão com o sentido que ela tem actualmente -, francamente, só pode ser utilizada por quem não leu com atenção o chamado "Episódio do Velho do Restelo", Canto IV, 94-104, dos Lusíadas, ou por quem deu conta de idênticas dúvidas sobre a chamada "Empresa da Índias" como, por exemplo, Gil Vicente ou Sá de Miranda.

Qual a justificação desta minha afirmação? O próprio texto dos Lusíadas, e não entrando aqui em considerando quanto a função e aos antecedentes deste tipo de episódio na história da literatura desde a Antiguidade, em que o Velho do Restelo é apresentado como sendo alguém muito digno : "Mas um velho de aspeito venerando," (Est. 94, v. 1) e "C'um saber só de experiências feito,/Tais palavras tirou do experto peito:" (Est. 94, vv. 7-8).

A seguir, o discurso do Velho do Restelo é uma reflexão filosófica sobre a empresa das Índias e que ele condena não por qualquer alergia ao progresso, mas por a considerar apenas comandade pela cobiça e que o custo de tal operação será muito mais elevado do que as suas vantagens, devido às consequências nefastas que terá na sociedade portuguesa.

Também rejeita o fundamento de "dilatar a Fé e o Império", pois se queriam combater o Infiel (os muçulmanos) tinham o Norte de África para o fazer, onde poderiam obter a fama, glória e riquezas que buscavam no Oriente longínquo.

O Velho do Restelo mais do que representar uma facção retrógada, alérgica ao progresso, representa uma parte da sociedade portuguesa, da alta nobreza, que dava, por razões ideológicas (e religiosas), uma importância maior ao nossos domínios no Norte de África, pois era aí que os filhos da alta nobreza normalmente terçavam pela primeira vez as armas.

Por outro lado, a empresa das Índias foi muito mais uma acção conduzida pela pequena e média nobreza que, nunca podendo alcandorar-se aos altos cargos no Norte de África, viu nesta empresa um meio de poder singrar na vida.

Mas, como eu disse mais acima, com o "Velho do Restelo" Camões deu voz nos Lusíadas (e lembremo-nos que os Lusíadas foram compostos dezenas de anos depois da Viagem do Gama), a esta facção contemporânea da viagem que estava contra a sua relização. Mas, já antes de Camões, Gil Vicente e Sá de Miranda tinham expressado as suas dúvidas sobre a nossa presença no Oriente.

No caso de Gil Vicente, basta reler o "Auto da Índia", de 1509 note-se, Gil Vicente critica o impacto das expedições ao Oriente na sociedade, da infidelidade feminica provocada pela ausência dos maridos, da cobiça do portugueses na Índia, sobretudo dos capitães, e da ilusão que criava nos soldados que regressavam de mão a abanar(vv.493-497):
Lá vos digo que ha fadigas,
Tantas mortes, tantas brigas,
E p'rigos descompassados,
Que assi vimos destroçados.
Pelados como formigas."
A mitologia oficial dos heróis dos Descobrimentos é logo aqui posta a nu.

Também Sá de Miranda (1481-1558), exprimiu semelhantes dúvidas sobre as vantagens de manter as possessões no Oriente, na famosa Carta a "António Pereira, senhor do Basto, quando se partiu para a Côrte co a casa tôda"(Edição Sá da Costa):
Não me temo de Castela,
donde inda guerra não soa;
mas temo-me de Lisboa,
que, ao cheiro desta canela,
o Reino nos despovoa.
Sá de Miranda, humanista, homem conhecedor da Europa e do que se passava no seu tempo, sentia o Oriente como causa de decadência do Reino.

Quando Camões escreveu os seus Lusíadas, havia já uma grande contestação ao modo como D. João III tinha dado prioridade à Índia, em comparação com o abandono de algumas das possessões africanas. lembremo-nos que, em parte, as posições do Velho do Restelo seriam as posições do próprio Camões, pois este insta D. Sebastião, no início e no fim dos Lusíadas, a fazer guerra em África contra os mouros (um resquício ainda do espírito de Cruzada e dos ideais de Cavalaria), aliás também partilhados, por exemplo, por Gil Vicente, no final do Auto da Barca do Inferno (os Cavaleiros mortos em África que vão directos para a Barca da Glória).

Em conclusão, o Velho do Restelo não representa uma opinião reaccionária, contra o progresso, mas apenas, uma opinião, bastante ancorada na sociedade portuguesa quinhentista, que duvidava, por diversos motivos, das vantagens da aventura oriental, das conquistas no Índico, chegando-lhe a atribuir as causas da decadência de Portugal. No eloquente discurso (cheio de processos retóricos que remontam a Homero) do Velho do Restelo, misturam-se as ideias de um Humanismo antibelicista, abrindo excepção a este antibelicismo à guerra com os Mouros.

Por isso não chamem Velho do Restelo àqueles que se opõe ao progresso ou que são, pura e simplesmente, refractários ao progresso, pois do que se trata aqui é de uma diferente avaliação do deve-haver da aventura imperial na Índia.

Post-scriptum. Esta entrada foi sugerida pela contínua audição, em diferentes circunstâncias, da expressão "Velho do Restelo" no sentido que eu contesto aqui.

Post-scriptum 2. O que eu digo aqui nem sequer prima pela originalidade, pois os programas do 10º ano (não estou a falar do actual), já pediam aos alunos para relacionar o Episódio do Velho do Restelo com o Auto da Índia. Todavia, o problema é que a expressão cristalizou o seu sentido.

quinta-feira, 17 de março de 2005

Camilo de Castelo Branco (1825-1890)

Ontem, por motivos de trabalho, não me foi possível assinalar os 180 anos do nascimento de Camilo de Castelo Branco (16-03-1825), uma das figuras de proa da segund ageração romântica. Um dos nossos maior romancistas, ou melhor novelista (e também contista), conhecido pela sua prosa, também experimentou outros géneros literários, como a poesia ou o teatro, para além da crítica e história literária, o jornalismo, por exemplo.

Não quero aqui, fazer qualquer estudo sobre a obra de Camilo, apenas assinalar, a data do seu nascimento através de um exemplo poético da sua obra, porque penso que esta faceta de Camilo é largamenbte desconhecida da maior parte das pessoas. É certo que não se pode comparar com a sua fcate de prosador, mas mesmo assim tem o seu interesse, mantendo, por exemplo, a ironia que o caracterizou.

Os meus amigos

Amigos cento e dez e talvez mais
Eu já vos contei! Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu já farto de os ver, me escapulia,
Às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente,
Ceguei. Dos cento e dez, houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

Que vamos nós (diziam) lá fazer?
se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e nove impávidos marotos!



sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

Os 150 anos de Cesário Verde

Quando em Dezembro do ano passado se passaram os 150 anos da morte de Almeida Garrett houve quem criticasse (e com justiça) a Câmara Municipal do Porto, e não só, por praticamente ignorar essa data. Ora, hoje passam 150 anos sobre o nascimento de um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos: Cesário Verde. Sinceramente não sei se alguém na Câmara Municipal de Lisboa se lembrou desta data, mas se o não fez deveria fazê-lo, pois poeta foi um dos grandes poetas da cidade Lisboa.
José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa a 25 de Fevereiro de 1855, no dia consagrado pela Igreja Católica a São Cesário, filho de um casal abastado de comerciantes, com loja de ferragens aberta ao público na Rua dos Fanqueiros. Para além disso, o pai de Cesário Verde herdou de um tio uma quinta em Linda-a-Pastora. Naturalmente, toda a educação do futuro poeta foi orientada segundo os projectos familiares, tendo aos 17 anos iniciado a sua carreira profissional na loja do pai.
E quanto às letras? Como terá surgido a vocação? Sabemos apenas que em 1873 se matriculou como aluno voluntário no Curso Superior de Letras. O curso, se é que o seguiu, pelo menos não fez os exames, não teve qualquer influência na sua vida profissional nem na sua obra. Todavia, foi na frequência deste curso que encontrou Silva Pinto, que ficou seu amigo para toda a vida. A sua produção poética estendeu-se de 1873 até à sua morte em 1886, isto é, 13 breve anos. Mas foi quanto bastou para ser um dos maiores poetas portugueses dos últimos 150 anos.
Cesário Verde não publicou qualquer livro em vida. Os seus primeiros poemas publicados (3) foram-no no Diário de Notícias, por mão de Eduardo Coelho, director do jornal, que tinha sido antigo caixeiro do pai de Cesário. Por sua vez, Silva Pinto publica mais alguns poemas no portuense Diário da Tarde.
Em 1873 ou 74, Cesário teria projectado a publicação de um livro intitulado Cânticos do Realismo ou Ecos do Realismo. Todavia, este projecto não foi para a frente. É que, ao contrário do que acontece hoje, a sua obra sofreu de indiferença geral ou mesmo de incompreensão. Os seus contemporâneos não tinham uma opinião muito elogiosa sobre ela.
Teófilo Braga, referindo-se ao poema Esplêndida, disse “que um poeta amante e moderno devia ser trabalhador e não devia rebaixar-se assim”. E porquê? Este poema, publicado em 22 de Março de 1874, termina assim:
E daria, contente e voluntário,
A minha independência e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.
E aos almoços magníficos do Mata
Prefiriria ir, fardado, aí
Ostentando galões de velha prata,
E de costas voltadas para ti
Formosa aristocrata.
Nunca o positivista Teófilo poderia suportar tal. Todavia, neste poema, não se pode admitir uma leitura do sujeito poético em moldes românticos. Há que assumir o fingimento poético, este sujeito não é para ser lido como projecção do autor. Tal não foi, obviamente, compreendido por Teófilo, que estabelece uma identidade entre autor/sujeito poético. Ora, esta relação pode existir ou não, mas Teófilo pensava ainda em moldes românticos.
Mas também Ramalho Ortigão n’As Farpas o critica vivamente, aconselhando-o a tornar-se “menos verde e mais Cesário”. Fialho de Almeida também não o poupou. No entanto, Cesário reconciliar-se-ia mais tarde quer com Ramalho quer com Fialho.
De notar que o próprio Cesário Verde era republicano, positivista e agnóstico, e que frequentemente integra a questão social nos seus poemas. Mas a ideia que imperava na época do que a poesia deveria ser não se coadunava com a poesia de Cesário que, por exemplo, retratava o quotidiano da cidade, as pessoas, profissões ou lugares de uma forma que era considerada pouco poética. O mesmo poeta que escreveu Esplêndida, escreveu Deslumbramentos, publicado em Fevereiro de 1875 no Mosaico de Coimbra, que termina assim:
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!
Este passo parece um reflexo da ideia anteriana da poesia como Voz da Revolução e da retoma da função social da poesia da 1.ª geração romântica que Antero fez e que se tinha perdido, na sua maior parte, com o Ultra-romantismo.
De qualquer modo, a indiferença e a incompreensão com que a sua obra foi acolhida, mesmo por aqueles que politicamente lhe estavam mais próximos, provocaram-lhe outras decepções. Por exemplo, Teófilo Braga não o incluiu numa antologia de poesia, Parnaso Português Moderno (1877), antologia essa que representaria, supostamente, as novas tendências da poesia. Aliás, mais tarde, na sua obra As modernas ideias na Literatura Portuguesa (1892), Teófilo volta a não referir Cesário Verde.
A sua poesia reflecte frequentemente esta decepção pela incompreensão da sua obra (Contrariedades):
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.
(…)
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Todavia, também não admira que a obra de Cesário não tivesse tido uma boa recepção: não publicou livros em vida, morreu jovem, a sua obra foge a qualquer classificação muito rígida, não optou exclusivamente por qualquer escola. Deste modo a sua poesia é caracterizada como realista, mas também como simbolista, parnasiana, pré-modernista, romântica e até surrealista (avant la lettre, é claro).
Por outro lado, temos que ver a situação particular do poeta. Cesário era um empregado do comércio que se dedicava à poesia. Por esse motivo, não pertencia aos círculos literários da época, o que também não facilitou a sua recepção. Depois da sua morte, em 19 de Julho de 1886, com apenas 31 anos, o seu amigo Silva Pinto, a expensas suas, fez publicar cerca de 50% das suas poesias, numa edição não comercial de 200 exemplares, segundo um critério editorial ainda hoje discutido (terá sido do poeta ou exclusivamente de Silva Pinto).
A poesia de Cesário é redescoberta no séc. XX e influencia o modernismo bem como grande parte da poesia do século. Fernando Pessoa, na sua poesia, através de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos considera-o como um dos seus mestres. Mas Pessoa em textos teóricos também o considera como mestre e precursor. Assim num texto sem data (publicado em Colóquio-Letras, n.º 8, Julho de 1972 e transcrito António Quadros, Páginas sobre Literatura e Estética, Europa-América), Pessoa escreve:
Houve em Portugal, no século dezanove, três poetas, e três somente, a quem legitimamente compete a designação de mestres. São eles, por ordem de idades, Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. Com a excepção de Antero, todavia dubitativamente aceite e extremamente combatido, coube a todos os três a sorte normal dos mestres – a incompreensão em vida, nos mesmos (como em Byron, derivando de Wordsworth e combatendo-o) sobre quem exerceram influência.
Num outro texto, datado de 11-11-1934, publicado na mesma revista e transcrito na mesmo livro, Pessoa volta a escrever:
O segundo [Cesário Verde] ensinou a observar em verso; descobriu-nos a verdade de que o ser cego, ainda que Homero em lenda o fosse e Milton em verdade se tornasse, não é qualidade necessária a quem faz poemas.
Num texto presumivelmente datado de 1916 e transcrito por António Quadros (op. cit.), Pessoa considera Cesário como um precursor do Sensacionismo:
[O Sensacionismo] Tem só 3 poetas e tem um precursor inconsciente. Esboçou-o levemente, sem querer, Cesário Verde.
A poesia de Cesário tem presentes alguns dos objectivos da poética de Antero, como a ligação do lirismo à ideia de justiça. No entanto, esta ligação faz-se de um modo diferente, pois Cesário está contaminado pela técnica analítica do romance naturalista. Cesário é essencialmente o poeta da observação, não das questões gerais.

Por outro lado, Cesário é anti-sentimentalista pois sofre uma forte influência do parnasianismo (por exemplo, procura o tom neutro, não exaltado ou veemente dos românticos, próprio dessa poética), mas não é um parnasiano, pois ao lado descritivista ele alia ao formalismo à intervenção social e as condições sociais (os parnasianos defendiam o indiferentismo perante o social e a Arte pela Arte).

Muitos outros temas das poesia de Cesário poderiam ser abordadas: a poetização do real, o tempo e a morte, a imagética feminina, o binómio cidade/campo, mas não foi o meu objectivo neste artigo, pois não pretendi com esta breve exposição explicar as características principais da poesia de Cesário Verde, nem sequer em ser original, mas apenas evocar o poeta incompreendido pelos seus contemporâneos e a quem a posteridade lhe concedeu, muito justamente, uma fama muito superior àquela que teve em vida.
De muito dos poetas mais lidos naqueles tempos, como por exemplo, Tomás Ribeiro ou Pinheiro Chagas,  se lê alguma coisa regularmente hoje em dia? De personagens importantes no mundo da literatura da época como Teófilo Braga, o que resta hoje?
Cesário, na minha opinião, juntamente com Camilo Pessanha e Fernando Pessoa forma a  trindade maior dos poetas portugueses dos últimos 150 anos. Embora Portugal tenha tido outros excelentes poetas durante este tempo, todos esse não jogam (e aí vai uma metáfora futebolística) na mesma divisão.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2005

Carlos Magno

Faz hoje 1191 anos que morreu Carlos Magno, Imperador dos Francos. Foi a 28 de Janeiro de 814. Antes de continuar a série de artigos intitulados "Humanae Litterae", aproveito esta data para, tendo eu mencionado parte II o chamado Renascimento Carolíngio, apresentar uma passagem da Vita Karoli Magni de Einhard (770-840), biógrafo de Carlos Magnos, representando, é claro que num registo elogioso, o esforço que um rei, da Alta Idade Média, fez para se elevar a um nível superior ao da sua época (minha tradução):

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[Carlos Magno] tinha o dom de uma eloquência extraordinária e conseguia exprimir claramente fosse o que fosse. Não satisfeito com o domínio da língua materna, aprendeu também línguas estrangeiras, em particular o Latim de tal modo que o falava tão bem como a sua língua materna, no entanto era capaz de compreender melhor o Grego do que o falava. Na verdade, era tão eloquente que poderia passar por professor de eloquência.

Cultivou com extrema aplicação as artes liberais, tendo os seus professores em grande estima, cumulando-os com grandes honras. Na aprendizagem da gramática foi díscipulo do idoso diácono Pedro de Pisa, nas demais disciplinas teve como mestre Albino de Britânia, com o cognome de Alcuíno, um homem de origem saxónica, homem em todos os aspectos douto, com o qual dedicou muito tempo e esforço ao estudo da retórica, dialéctica, e principalmente astronomia. Aprendia aritmética e observou, ávido de saber, com uma atenção penetrante, o movimento dos astros.

Tentou escrever e costumava manter tabuinhas e placas na cama sob o travesseiro, para que nas horas livres pudesse habituar a mão a formar as letras; no entanto, teve pouco sucesso pois começou os seus esforços fora da idade apropriada, em idade avançada.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2005

Humanae Litterae - Parte II

No seguimento do artigo de Humanae Litterae – Parte I de 15/11/2004, apresento, por fim, a continuação que me propus fazer.

Quando se fala em Renascimento praticamente toda a gente lembra-se, sobretudo, dos séculos XV e XVI, da Itália, dos Humanistas, Leornardo da Vinci, por exemplo, e que, de modo geral, a palavra Renascimento se aplica aquele movimento cultural que sucedeu à Idade Média, cujo o fim é tradicionalmente fixado como o do ano da conquista de Constantinopla, em 1453, por Maomé II, embora o início deste período não seja igual para todos os países, pois, por exemplo, Petrarca, sem dúvida um humanista, é do século XIV enquanto que o Renascimento humanístico em Portugal é geralmente datado do final do séc. XV (1485) com a chegada de Cataldo Parísio Sículo.

Subjacente ao conceito de Renascimento dos séculos XV e XVI está a ideia de um renascimento cultural, subentendendo-se que depois da Antiguidade Clássica a Europa teria caído na barbárie durante a Idade Média, sendo o Renascimento a recuperação da cultura dos clássicos. Régine Pernoud na sua obra O mito da Idade Média (Europa-América) - no original Pour en finir avec le Moyen Age -, cita um Dictionnaire général des lettres de 1872 que sobre o Renascimento diz o seguinte “as artes e as letras que pareciam ter soçobrado no mesmo naufrágio que a sociedade romana, pareceram reflorir e, após dez séculos de trevas, brilhar com novo clarão”.

É claro que esta mesma noção foi fortemente alimentada pelos próprios humanistas do séc. XV e XVI, desejosos de marcar a diferença com o período imediatamente antecedente. Giorgio Vasari (1511-1574), pintor e historiador de arte, afirmou que entre o sécs. XV e XVI tinha sido criada "una nuova era di rinascita e rigenerazione dell'umanità".

Mas autores de séculos posteriores, sobretudo do séc. XVIII e XIX, também foram bastante insistentes sobre este ponto. Como diz José V. Pina Martins (in Dicionário de História Religiosa de Portugal, Círculo dos Leitores, p. 126):

Ligado intimamente ao conceito de Renascimento encontra-se o problema das relações do Renascimento com a fase histórica que o precede, a Idade Média. Embora os humanistas do séc. XV tivessem consciência de romper as «trevas» da idade anterior, foi a partir do século XVIII que a interpretação do Renascimento, na sua primeira fase preenchida pela cultura do humanismo, começou a definir-se como fractura em relação ao período cultural precedente. Para os que sustentaram o conceito de Renascimento como de ruptura inequívoca das normas da transcendência, com o propósito de apresentarem a Idade Média como uma época de obscurantismo intelectual e de tirania eclesiástica, para esses o Renascimento representa o triunfo sem reticências da omnipotência do homem, autónomo em sentido universal, criador do seu próprio mundo. As ideias do humanismo renascentista representariam, assim, o divórcio total das exigências terrenas perante a realidade transcendente, tida como superstição. (...) O Renascimento continua, através de uma evolução historicamente diferenciada, a marcha cultural da Idade Média.

Sabemos actualmente que esta ideia está errada, pois a Idade Média, não foi, no seu todo, a “idade das trevas” que normalmente lhe está associada e que leva, por exemplo, a ouvirmos o adjectivo “medieval” a propósito daquilo que se pensa ser retrógado ou bárbaro.

De facto, e parece que isso é muitas vezes esquecido, os eruditos da Idade Média conheciam grande parte dos clássicos, sobretudo os latinos e também alguns gregos. Já para não falar de casos como Venâncio Fortunato (530-600) ou Santo Isidoro de Sevilha (séc. c. 560-636), último Padre da Igreja Ocidental e o grande mestre da Idade Média da Alta Idade Média, que muitos poderão considerar como últimos legados da civilização romana, temos que notar que, na época contemporânea, se referiu a palavra “renascimento” a propósito de outros séculos durante a Idade Média.

Assim, temos o chamado Renascimento carolíngio, no tempo de Carlos Magno, que durante o seu reinado, rodeou-se em Aix-la-Chapelle de alguns dos maiores sábios da época, Pedro de Pisa, Alcuíno, Eginhard, mas, obviamente este movimento não é comparável com o movimento de 600 anos depois. Também a partir do séc. XII, em toda a Europa há um florescimento da actividade intelectual, lembremo-nos por exemplo de Dante Alighieri (1265-1321), que denota um grande conhecimento da Antiguidade Clássica.

Por outro lado, é preciso não esquecer que, se em muitos casos lemos actualmente os clássicos da Antiguidade, foi porque os seus escritos foram copiados e recopiados durante séculos, mesmo os de autores como Catulo, nos mosteiros medievais e mesmo durante a Alta Idade Média. O que distingue o Renascimento de todos os anteriores períodos da Idade Média é a sua imitação servil da Antiguidade Clássica. Durante a Idade Média a Antiguidade já era conhecida, mas servia apenas de suporte para alcançar horizontes mais vastos. No Renascimento, a Antiguidade era o modelo inultrapassável, o nec plus ultra.

Dito isto, não devemos reduzir o Renascimento ao Humanismo, mas devemos reconhecer que, numa primeira fase, foi a vertente humanística que moldou teoricamente o Renascimento. Mas quanto a este problema, o da relação entre Humanismo e Renascimento, espero voltar mais tarde.

Mas se o Humanismo moldou o Renascimento, tê-lo-á feito em contraponto com a Idade Média? Há muitos que, na esteira do conceito de Renascimento como recuperação da cultura depois de mil anos de trevas, consideram que a uma Idade Média totalmente religiosa se opôs um Renascimento laico e imanentista (cf. Gioachino Paparelli in Feritas, Humanitas, Divinitas, p. 18).

Mas antes de avançarmos para este ponto e apresentarmos as razões pelas quais esta visão antagónica entre a religiosidade da Idade Média e o laicismo do Renascimento (Humanismo) não pode ser aceite, vamos ver qual a origem de Humanismo.

Será o tema do próximo artigo desta série. Prometo não demorar tanto tempo como aconteceu com esta parte II.