sábado, 1 de janeiro de 2011

Bom Ano Novo

Coimbra, 1 de Janeiro de 1980 - Um alívio e um voto. É o que querem dizer estes foguetes e esta algazarra que festejam a partida do ano velho e saúdam a entrada do novo. O espírito de conservação é teimoso. Quantas mais desilusões a vida lhe dá, mais se ilude. Existir não é fácil. É preciso perder diariamente a memória das más horas e renovar diariamente a esperança das boas.
Miguel Torga, Diário XIII, in Diário (Volumes XIII a XVI), Círculo de Leitores, 2001, p. 1302.

domingo, 23 de novembro de 2008

D. Francisco Manuel de Melo

Faz hoje 400 anos que nasceu D. Francisco Manuel de Melo. Como lembrança deste facto, deixo aqui um dos seu poemas.

Ao Arcanjo são Rafael, pedindo-lhe
dirija sua molesta navegação

Piloto Celestial, Norte divino
Primeiro Tifis, Palinuro belo,
Guiador de Tobias a Gabelo,
Igual luz que do Velho, do Minino

Este madeiro que sem luz, sem tino,
Corta do mundo tanto paralelo,
Que presago se mostra em seu desvelo,
Mais do naufrágio que do porto dino!

Socorrei e guiai, entre as porfias
Dos erros e das sombras que ignorante
O desviam do porto verdadeiro!

Qual como fostes a ambos os Tobias,
Do Pai mèzinha e médico elegante,
Do Filho guia e doce companheiro.

(D. Francisco Manuel de Melo, Poesias Escolhidas, Prefácio, selecção, notas, tábua de concordância e glossário poe José V. de Pina Martins, Editorial Verbo)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Padre António Vieira

O alto funcionário ultramarino segundo o Padre António Vieira:
Aparece uma nuvem no meio daquela Baía, lança uma manga ao mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de água; e depois que está bem cheia, depois que está bem carregada, dá-lhe o vento, e vai chover daqui a trinta, daqui a cinquenta léguas.

Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta: se na Baía tomaste essa água, se na Baía te encheste, porque não choves também na Baía? Se a tiraste de nós, porque a não despendes connosco? Se a roubaste a nossos mares, porque a não restituis a nossos campos? Tais como isto são muitas vezes os ministros que vêm ao Brasil - e é fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da Linha, onde se diz que também refervem as consciências, e em chegando, verbi gratia, a esta Baía, não fazem mais que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos, mas sabidos), e ao cabo de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a água que era nossa, abrem as asas ao vento, e vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madrid.
Padre António Vieira, Sermão da Visitação de N. Senhora, pregado no Hospital da Misercórdia da Baía

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Macias (I) - Dados briográficos possíveis

Cumprindo a promessa de escrever sobre Macias, publico agora o primeiro artigo sobre este poeta, versando sobre os problemas do estabelecimento da sua biografia.

Muito pouco de concreto se sabe da vida de Macias, não se sabendo ao certo em que anos viveu. É um poeta da escola galego-castelhana, isto é, posterior à morte do D. Pedro, conde de Barcelos, em 1354, situando-se na passagem da poesia galego-portuguesa para poesia do séc. XV.

A sua obra não conserva referências que possam ser associadas a factos históricos conhecidos, apenas uma rubrica nos informa de que o poema o “fizo Macias contra el amor, enpero algunos trobadores tizen que la fizo contra el rrey don Pedro” (Cancioneiro de Baena, n.º 308). Tudo o resto provém da tradição, tal como a sua transformação no mártir por amor por excelência, o mais glosado na poesia peninsular nos sécs. XV e XVI.

Cronologicamente, parece ter vivido durante o reinado de Pedro, o Cruel, de Castela (reinou entre 1350 e 1369). Concorre também para esta opinião o facto do Marquês de Santillana (1398-1458) no seu Proemio e carta al condestable don Pedro de Portugal que diz, depois de falar da poesia galego-portuguesa:

Después dellos [dos trovadores galego-portugueses] vinieron Vasco Peres de Camoes e Fernand Casquicio e aquel grande enamorado Macias, del qual no se fallan syno quatro canciones, pero ciertamente amorosas e muy fermosas sentencias, conuiene a saber: Catiuo de miña tristura, Amor cruel e brioso Señora, en quien fiança e Prouey de buscar mesura.

(Marqués de Santillana, Poesias Completas, II, Edición, introducción y notas de Manuel Durán, Madrid: Clásicos Castalia, p. 219)
Vasco Peres de Camões (c. 1330) foi um poeta galego que no final do séc. XIV esteve ao serviço do rei D. Fernando I de Portugal e durante a crise de 1383-1385 tomou o partido de Castela.

Juan Rodriguez del Padrón (1390-1450), poeta galego, conhecido como del Padrón por ter aí nascido, parece sugerir que Macias era galego e, mesmo, da mesma localidade quando liga a sua fama como mártir de amor com a de Macias.

Si te plaze que mis dias
yo fenezca mal logrado
tan en breve
plégate que com Macías
ser meresca sepultado:
y decir deue
do la sepultura sea:
una tierra los crió,
una muerte los leuó,
una gloria los possea.

(in António Paz Y Meliá, Obras de Juan Rodriguez de la Câmara (o del Padrón), Madrid, 1884, p. 13).

A esta definição da possível cronologia biográfica de Macias está também ligada a algumas das versões da tradição que o transformou no representante maior do mártir de amor, que terá uma grande influência na poesia cancioneiril na Península Ibérica. Esse será o próximo capítulo.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Dia Mundial da Poesia

Não gosto muito dos "dias mundiais de...". Aliás, como prova este blog, não preciso deste dia, por exemplo, para falar de poesia. Mas, a poesia sempre teve uma aura mítica, afinal os próprios oráculos em Delfos eram metrificados (embora em Plutarco haja queixas de que só diziam banalidades e estavam cheios de erros de métrica e de estilo, apesar de Apolo ser o chefe das Musas). O Marquês de Santillana, depois de definir o que é a poesia segundo as regras da retórica, defende a superioridade da poesia sobre a prosa:
E qué cosa es la poesía, que en nuestro vulgar gaya sciencia llamamos, syno un fingimiento de cosas útyles, cubiertas o veladas con muy fermosa cobertura, conpuestas, distinguidas y scandidas por cierto cuento, peso e medida?

[...]

E asy faziendo la via de los stoycos, los quales con grande diligencia inquirieron el origine e causa de las cosas, me esfurço a dezir el metro ser antes en tiempo e de mayor perfección e más auctoridad que la soluta prosa.
Esta ideia expressa pelo Marquês de Santillana de que a poesia tem maior prestígio e é mais antiga do que a prosa foi muito popular e durou até ao início do séc. XVIII. Giambattista Vico (1668-1744) defendeu que a linguagem humana começou como poesia, pois as mais antigas manifestações linguísticas eram poéticas (no tempo de Vico ainda não tinham sido descobertas as tábuas de argila sumérias cujo conteúdo era, na sua maioria, registos comerciais e de contabilidade). Também Johann Gottfried Herder (1744-1803) defendeu o mesmo (cf. Peter Seuren, Western Linguistics, Blackwell, pp. 76-77). É uma ideia que está agora completamente esquecida.

Mas o elevado estatuto que o a poesia e o poeta goza mantém-se (aliás como a figura do "intelectual" ou do "escritor"). É claro que, para mim, foram do âmbito da literatura, os poetas são como outra pessoa qualquer, não é por isso que eu considero mais ou menos aquilo que dizem. Digo isto porque, frequentemente, vejo nos meios de comunicação social uma reverência ou um embasbacamento bacoco para com pessoas que têm um qualquer tipo de obra na chamada "cultura", que falam do assunto como se fosse só para mentes brilhantes ou para iniciados ou uma coisa mística. Ora, isto a mim que, por exemplo, gosto muito de poesia irrita-me um pouco.Tive um professor de Introdução aos Estudos Literários que repetia-nos sempre que "letras não são tretas".

A poesia é algo muito diverso, para todos os gostos. Toda a gente pode gostar de poesia. É claro que a seu leitura implica maior esforço, maior estudo, mas não tem que ser propriedade de uns "happy few". E, se há alguma coisa que tem feito mal ao gosto de ler poesia, essa coisa é o Ministério da Educação mais os seus programas de português têm feito com que muita gente odeie poesia.

Enfim, espero apenas que o Dia Mundial da Poesia leve mais algumas pessoas a lerem poesia, mas também a lerem melhor poesia. É que nem tudo que por aí se publica vale muito bem a pena ler.

domingo, 28 de janeiro de 2007

Macias, o Namorado

O meu próximo artigo será sobre o poeta Macías, trovador galego de meados do século XIV, mas que devido a uma lenda do séc. XV, em que Macías teria sido morto pelo marido da sua dama, que o transformou no arquétipo de mártir de amor e que fez dele um sujeito recorrente da poesia peninsular do séc. XV.

Alguns dos poemas a ele atribuídos apareceram no Cancioneiro de Baena (1445). Antes de iniciar o artigo, deixo aqui esta cantiga, para primeira amostra.

Cantiga de Macias para su amiga.
     Cativo! de mia tristura
ja todos prenden espanto
3 e preguntan que ventura
é que m' atormenta tanto
que non sei no mundo amigo
6 a quen mais de meu quebranto
diga d' esto que vos digo:
Quen ben see, nunca devia
9 al pensar, que faz folia.
Cuidei sobir en alteza
por cobrar mayor estado,
12 e caí en tal pobreza
que moiro desamparado.
Con pesar e con desejo
15 ben vos direi, mal-fadado,
o que ouço ben e vejo:
Cando o louco cree mais alto
18 sobir, prende mayor salto.
Pero que provei sandece,
por que me dev' a pesar,
21 minna loucura assi crece
que moiro por én trobar.
Pero mais non averei
24 se non ver e desejar,
e por én assi direi:
Quen en carcer sol viver,
27 en carcer deseja morrer.
Minna ventura en demanda
me poso atan dultada,
30 que meu coraçon me manda
que seja sempre negada.
Pero mais non saberán
33 de minna coita lazerada,
e por én assi dirán:
Can ravioso é cousa brava,
36 de seu sennor sei que trava.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Ainda Dante Alighieri

A Divina Comédia é sem dúvida a obra-prima de Dante e de longe a sua obra mais conhecida, aquela que o tornou conhecido ainda em vida (embora nem sempre pelas melhores razões - havia quem acreditasse que ele tinha estado mesmo no inferno), mas as suas outras obras, que poderíamos considerar como menores e de que a Vita Nuova faz parte, bastariam só por si para assegurar o lugar de Dante entre um dos grandes da literatura italiana em particular e mundial em geral.

O seu tratado de filologia De Vulgari Eloquentia, escrito em latim, composto por dois livros, embora Dante, originalmente, tivesse previsto quatro livros (nunca chegou a escrever os dois últimos), em que exalta a língua vulgar italiana (vulgar para Dante é a língua materna falada pelas pessoas em contraponto com o latim, aprendido, na sua época, pelos doutos).

Como se sabe, no tempo de Dante (e ainda nos séculos seguintes), as línguas nacionais não tinham o mesmo estatuto do que o latim, que era a língua universalmente utilizada por todos aqueles que tinham instrução, para assim se fazerem entender em qualquer ponto da Europa onde estivessem. Isto tinha várias consequências, como, por exemplo, a grande mobilidade dos estudantes universitários que, fossem para onde fossem, encontravam a aulas sempre dadas em latim.

Mas Dante considerou que a língua vulgar tinha a dignidade suficiente para tratar qualquer tema, mesmo os mais elevados. Dante e, mais tarde Petrarca, tiveram uma enorme influência para transformarem o toscano na língua italiana actual, suplantando todos os outros dialectos italianos. A Itália, naquela época (e até ao séc. XIX) não estava unida política, nem sequer linguisticamente. Foi através do prestígio adquirido pelas obras de florentinos influentes como Dante, Petrarca ou Boccacio, que a língua da Toscânia se elevou a padrão nacional da península.

O facto de ter escrito uma obra como a Divina Comédia em italiano, tratando temas profundos e complexos, permitiu que o toscano se elevasse a acima de todos os outros dialectos italianos, pois depois dele Boccaccio e Petrarca também escreveram no mesmo dialecto.

Outras obras de Dante tiveram, também alguma consequências imprevisíveis, por exemplo, após a sua morte, o legado pontifício da Lombardia quis que os restos mortais de Dante, que estavam em Ravena, fossem queimados juntamente com a sua obra De Monarchia, pois esta era considerada herética. Esta obra escrita em latim, em três livros, defendia a separação entre o Papado e o Império. Dante acreditava num Império universal como única modo de garantir a paz. Por isso o poder do Imperador não poderia estar sujeito ao do Papa. De qualquer modo, nem os seus restos mortais, nem a sua obra foram queimados.

Sob o titulo de Rimas reuniram-se todas as poesias escritas por Dante que não fazem parte da Vida Nova e do Convívio (este foi escrito entre os anos de 1304 e 1307 quando Dante estava no exílio, sendo em escrito em vulgar, pois tratava-se de uma obra de divulgação cultural). As Rimas são uma compilação que não foi feita pelo poeta, mas sim por críticos que fizeram um trabalho de pesquisa de poemas de Dante por entre manuscritos, tentando expurgar as falsas atribuições, para acabarem por fazer um espécie de "Cancioneiro" de Dante. Neste Cancioneiro pode assistir-se a amadurecimento poético de Dante, pois temos poemas de juventude como de idade mais avançada.

Dante Alighieri foi sem dúvida um dos grandes escritores de sempre, com uma agitada vida política que o fez exilar de Florença, para onde não voltou mesmo depois de morto, tendo sofrido muito por esse exílio.

Nos autem, cui mundus est patria velut piscibus equor, quanquam Sarnum biberimus ante dentes et Florentiam adeo diligamus ut, quia dileximus, exilium patiamur iniuste, rationi magis quam sensui spatulas nostri iudicii podiamus.

Eu, que tenho por pátria o mundo como os peixes o mar, embora tenha bebido no Arno sendo ainda menino de leite e tanto ame Florença que por seu amor sofro injustamente o exílio, apoio os meus propósitos mais na razão do que no sentimento.