segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Dois sonetos de Dante Alighieri (I)

Dante Alighieri (1265-1321) foi um dos primeiros grandes poetas italianos cuja obra mais conhecida, a Divina Comédia, é também considerada, por muitos, a primeira grande obra em língua italiana (do dialecto da Toscânia que por força do prestígio das obras literárias feitas nesta língua se estendeu a língua padrão da península itálica.

Mas a sua influência também se alastrou a outros géneros líricos, apesar de serem menos notados. Quando Sá de Miranda, na senda de Boscán e Garcilaso em Espanha, introduziu as formas petrarquistas, muita gente esquece que o próprio Petrarca tinha sido influenciado pelos poetas do Dolce stil nuovo (ele próprio influenciado pela lírica siciliana) do final do séc. XIII e de que Dante, juntamente Guinizelli, Cavalcanti ou Frescobaldi também fazia parte.

Mas o que era o Dolce stil nuovo? Segundo Pina Martins (Cultura Italiana, Editorial Verbo, 1971):
É sabido que esta designação foi cunhada por Dante Alighieri no XXVI canto do Purgatório, verso 57, nas palavras pelo poeta atribuídas a Buonagiunta: «Di qua dal dolce stil novo ch'iodo», que já representam a consciência de uma nova maneira de poetar e de exprimir pela poesia.
Esta "nova maneira de poetar" foi elevada à máxima perfeição por Petrarca. Nos finais do séc. XV e na primeira metade do séc. XVI o petraquismo estendeu-se pela Europa tendo entrado na península Ibérica, não sem polémica por parte dos defensores das formas tradicionais de expressão poética (aquela que está presente, por exemplo, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende) e que no século XVI começaram a chamar "medida velha" (talvez de uma forma depreciativa), sendo a medida nova os poemas em metros e formas italianas.

Voltemos a Dante. Tinha 9 anos quando viu pela primeira vez Beatriz, filha de um rico burguês de Florença. Esta Beatriz morreu precocemente em 1290 e, em 1293, Dante publica a sua obra "Vita Nuova", umm volume onde reuniu os poemas, escritos entre 1283 e 1293, com comentários, divididos em 42 breves capítulos.

O primeiro dos sonetos que escolhi é o seguinte:

XXI
Ne li occhi porta la mia donna Amore,
Per che si fa gentil ciò ch'ella mira;
Ov'ella passa, ogn'om ver lei si gira,
E cui saluta fa tremar lo core.
Si che, bassando il viso, tutto amore,
E d'ogni suo difetto allor sospira:
Fugge dinanzi a lei superbia ed ira.
Aiutatermi, donne, farle onore.

Ogne dolcezza, ogne pensero umile
Nasce nel core a chi parlar la sente,
Ond'è laudato chi prima la vide.
Quel ch'ella par quando un poco sorride,
Non si po dicer nè temer a mente,
Si è novo miracolo e gentile


Tradução de José V. Pina Martins:

Nos olhos traz a minha dama Amor,
Assim o que ela olha se enobrece;
Quando ela passa, todo o olhar a segue
E a quem saúda o coração estremece.
Tal que, baixando o rosto, desfalece,
De todo o seu defeito então suspira;
Perante ela se vão soberba e ira.
Senhoras, ajudai-me a enaltecê-la.

Toda a doçura, humílimo pensar
No peito nasce a quem a ouvir falar;
Louvado seja aquele que a reconhece!
O que ao sorrir um pouco ela parece
Não se pode dizer nem recordar,
Pois é milagre novo e para honrar.

(continua)

sábado, 30 de setembro de 2006

São Jerónimo

São Jerónimo, de seu nome Eusebius Hieronymus e que, também usou o pseudónimo de Sufrónio (Sophronius), morreu a 30 de Setembro de 420 d.C. (ou talvez 419 d.C.) em Belém, é por muitos considerado como o padroeiro dos tradutores.

Nascido no seio de uma família cristã da Dalmácia, c. 347, Jerónimo, depois de ter estudado em Roma, teve uma vida agitada que acabou por o levar à Terra Santa. Em 382, o Papa S. Dâmaso I (366-384 d.C.) convidou-o para seu secretário e foi então que S. Jerónimo se iniciou como tradutor da Bíbilia, pois o Papa, perante a multiplicidade das versões latinas, encarregou-o primeiro de fazer a revisão dos Evangelhos, comparando-o com os originais em grego, trabalho que depois se estendeu a todo o Novo Testamento e ao Livro de Salmos. As suas traduções do Novo Testamento foram em geral bem acolhidas, mas as dos Livro de Salmos nem por isso (de facto, a Igreja continuou a usar as traduções anteriores, pois eram bem mais conhecidas dos cristãos). Mas isto era apenas o começo.

Quando o Papa morreu, S. Jerónimo, passado alguns meses (Agosto de 385) foi para a Terra Santa acabando por se fixar em Belém. Aí, empreendeu a sua obra mais polémica, entre 390-405, a tradução do Antigo Testamento directamente a partir do hebreu. As suas traduções foram extremamente polémicas. As populações estavam habituadas às ínúmeras versões latinas (cf. Vetus Latina, habitualmente traduzidas a partir da versão grega. nomeadamente do chamada Septuaginta (também conhecida como dos Setenta ou LXX).

Mas apesar da contestação inicial, a versão de São Jerónimo acabou por impor-se com o decorrer dos séculos e foi importante para a consolidação e unidade do Cristianismo. Santo Agostinho na sua De Doctrina Christiana (2.16) refere essa mesma variedade de traduções latinas:
Contra ignota signa propria magnum remedium est linguarum cognitio. Et latinae quidem linguae homines, quos nunc instruendos suscepimus, duabus aliis ad Scripturarum divinarum cognitionem opus habent, hebraea scilicet et graeca, ut ad exemplaria praecedentia recurratur, si quam dubitationem attulerit latinorum interpretum infinita varietas.

O grande remédio contra a ingnorância dos próprios signos é o conhecimento de línguas. E, na realidade, as pessoas que falam latim, a quem agora pretendo instruir, para conhecer as Escrituras Divinas têm que conhecer outras duas línguas, o hebreu e o grego, com as quais se pode recorrer aos textos originais, se alguma dúvida surgir da [leitura] da infinita variedade dos tradutores latinos.
De facto, a qualidade das traduções latinas da época era de qualidade muito variável, pelo que, apesar da contestação, a tradução de São Jerónimo, que ficou a ser conhecida como Vulgata começasse a implantar-se na Igreja ocidental. A influência que a Vulgata teve na maioria das línguas da Europa Ocidental também absolutamente impressionante, pois foi, durante séculos, a fonte para todas as traduções da Bíblia em línguas vernáculas.

Mas, se São Jerónimo já teria um lugar como tradutor célebre por este feito, ficou ainda mais conhecido pelo seu temperamento belicoso que o fazia, por exemplo, escrever contra quem contestava as suas opções translatórias. E, por esse facto, através, principalmente, de duas cartas - a n.º 57 (a Pamáquio) e a n.º 106 (a dois padres godos), para além dos prefácios a cada livro da Bíblia traduzido, que São Jerónimo desenvolve a sua teoria da tradução.

Douglas Robinson, no seu livro WesternTranslation Theory, diz (p. 23), a propósito da carta n.º 57 Ad Pammachium De Optimo Genere Interpretandi (A Pamáquio, O melhor método de tradução) o seguinte:
His letter to Pammachius on the best kind of translator, written in Bethlehem in 395, is the founding document of Christian translation theory; along with Cicero, Luther, and Goethe, Jerome is one of the most influential translation theorists in the Western tradition.
Como diz ainda Robinson um pouco mais adiante, com esta carta São Jerónimo iria
formulate the first truly post-Ciceronian translation theory, incorporating Ciceronian elements into a new ascetic regimen that stressed the accurate transmission of the meaning of the text rather than the budding orator's freely ranging imitation.
Esta carta de São Jerónimo a São Pamáquio foi motivada pela acusação de Rufino, tradutor de Orígenes, ex-amigo de São Jerónimo, que o acusou de ter deturpado o sentido e a forma de uma carta que Epifânio, bispo de Constância (Chipre), enviou a João, Bispo de Jerusalém, quando Epifânio tentava afastar João de uma suposta "heresia origenista". Nessa controvérsia entre os dois bispos, Eusébio de Cremona pediu a Jerónimo que traduzisse uma das cartas, tradução que não era para ser publicada, mas antes para uso exclusivo do solicitante. Só que, dezoito meses depois, a tradução apareceu publicada em Jerusalém. Foi aí que aconteceu a acusação de Rufino.

Nesta carta, que é uma contestação violenta a Rufino, São Jerónimo não se dirige a ele, mas sim a São Pamáquio, procurando explicar o melhor método de tradução, começando por fazer a história do caso e, a seguir, mencionando os defeitos que os adversário lhe apontam, por exemplo, "me uerbum non expressisse de uerbo, pro honorabili dixisse carissimu" (que não traduzi palavra por palavra, que em vez de honorável disse caríssimo), para além de outras inisnuações.

São Jerónimo, depois, apresenta o seu conceito de tradução, não se furtando em citar Cícero (De Optimo genere oratorum) e Horácio (Ars poetica) em sua defesa. São Jerónimo refuta a tradução literal, preferindo a tradução do sentido (esta oposição entre literalidade e sentido vai ocupar os tratados téoricos de tradução até ao século XX), mas, no entanto, no que refere às Sagradas Escrituras, diz o seguinte:
Pela minha parte, realmente, não apenas confesso, mas proclamo a plenos pulmões que quando traduzo os textos gregos - que não sejam as Sagradas Escrituras (onde até a estrutura da frase é mistério - não é a palavra, mas o sentido que exprimo.
Para justificar este passo, São Jerónimo apoia-se em Cícero, quando este justifica as suas traduções de Ésquines e Demóstenes. Mas esta excepção da tradução das Sagradas Escrituras ao método geral de tradução é um pouco contraditória nesta epístola a São Pamáquio, pois, no seguimento da sua longa carta, São jerónimo dá inúmeros exemplos tirados, por exemplo, dos Setenta para abonar a sua tese sobre o bom tradutor. E, no essencial, para São Jerónimo, o bom tradutor é o que traduz como "orator" e não o que traduz como "interpres", aquele que capta o sentido das ideias, não das palavras. Aliás, São Jerónimo, para reforçar esta ideia, a da importância de captar ideias e de as transmitir, diz mesmo:
Aquilo que vós gostais de chamar tradução exacta, é aquilo a que as pessoas instruídas chamam mau gosto.
A influência que a sua teoria de tradução exerceu nos séculos seguintes foi imensa e, Martinho Lutero (1483-1546) quando acusado de ter traduzido erradamente algumas frases da Bíblia em alemão, decide escrever, em 1530, alguns considerandos sobre o acto de traduzir (Sendbrief vom Dolmetschen - algo como Circular ou Carta aberta sobre a tradução), na verdade, ele, que rompeu com o Catolicismo, não rompe com a teoria de tradução de São Jerónimo. sendo que a questão central, 1135 anos depois de São Jerónimo, era ainda a questão de, numa tradução, se ter que traduzir a palavra ou o sentido.

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Catulo - Parte II

A poesia de Catulo

Os poemas que de Catulo que conhecemos foram preservados em vários manuscritos com uma história tortuosa. A partir do sec. XIV, estes manuscritos começaram a ser copiados e estudados pelos humanistas. Neles se recolhe uma antologia de 116 poemas que, formalmente, se dividem, sem qualquer ordem cronológica, em 60 poemas curtos com diferentes metros (1-60), 8 poemas longos (61-68) e 48 epigramas em dísticos elegíacos (69 – 116).

A poesia de Catulo trata dois grandes temas: a poesia de amor e a poesia satírica (havendo, claro está, muitos poemas que não caiem em qualquer destas duas categorias).

Nos poemas de amor, sobretudo os de menor extensão, Catulo mostra todo o seu temperamento emotivo, entre o amor exaltado (5) ao ódio maledicente (58), na sua relação com Lésbia. No entanto, Lésbia não tem o exclusivo dos poemas de amor ou eróticos, havendo outros que são dedicados a outras pessoas (homens e mulheres).

A poesia satírica é, por vezes, extremamente violenta e mesmo obscena, dirigida, entre outros, a ex-amigos, outros amantes de Lésbia, poetas exteriores ao seu grupo, políticos, entre eles, César (93) e Cícero (49) e ainda outras personagens actualmente desconhecidas. Apesar de muitos deles serem violentos e cruéis, outros há em por eles passa uma fina ironia (84).

Mas, há muitas poesias que não se enquadram nestes dois temas principais. Catulo, por exemplo, celebra, de um modo igualmente exuberante, os seus amigos (13) e companheiros literários (95). São também muito conhecidos os seus poemas em que celebra a casa de campo familiar de Sírmio (31) ou a sentida homenagem ao seu irmão falecido (101)

Catulo e os poetae noui

Catulo pertenceu a um grupo de poetas que foi denominado neoteroi ou poetae noui, sendo que, deste grupo, apenas as obras de Catulo chegaram até nós. Esta denominação, feita, por exemplo, por Cícero (Att., 7.2.1) tinha uma conotação negativa, pois no que toca à poesia, Cícero apreciava o muito tradicional Énio (239-169? a.C.).

Mas em que consistiu a revolução feita pelos poetae noui? Como se disse, o único poeta cuja obra nos chegou foi Catulo. Por isso, é para a sua obra que temos de olhar para tentar definir em que consistiu a sua inovação.

Não foi certamente Catulo quem introduziu a poesia lírica em Roma, mas foi ele quem lhe deu, definitivamente, as suas lettres de noblesse na cidade. Na sua obra, os poemas líricos, isto é, os poemas curtos e os epigramas distinguem-se bem dos poemas narrativos ou elegíacos. Na maioria dos poemas líricos, Catulo expressa todos os seus amores e desamores, gostos, amizades e inimizades.

Nestes poemas há uma influência notória de poetas gregos arcaicos como Safo e Arquíloco, por exemplo. Aliás o pseudónimo Lésbia é uma clara homenagem a Safo (que como se sabe era natural da ilha de Lesbos). Estes poetas gregos arcaicos foram imitados Calímaco e outros poetas alexandrinistas e, mais tarde, pelos poetae noui. Catulo introduziu na poesia lírica latina a métrica eólica (que tinha sido utilizada por Safo), embora Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), alguns anos mais tarde, reclame, para si próprio, esse feito (Carmina, 3.30).

Por outro lado, os poetae noui foram também influenciados pelos poetas alexandrinistas. Quem eram estes alexandrinistas? Eram poetas do período helenístico, não do período clássico da literatura grega, e que tiveram Alexandria como o seu centro de difusão. Entre estes poetas encontramos nomes como Apolónio de Rodes (sec. III a.C.), Teócrito e Calímaco (sec. IV-III a.C.) ou Euforião (III-II a.C.).

Assim, em Alexandria, sob o reinado dos Ptolomeus, desenvolveu-se uma corrente poética que se formou em oposição aos poetas do período clássico e que renovou os cânones da poesia grega, tanto nas formas como nos temas, acabaram-se a descrição dos feitos de deuses e heróis, e uma grande curiosidade por histórias de mitologia pouco conhecidas ou obscuras. Isto fazia realçar a sua erudição. Estas histórias rebuscadas são vertidas em composições breves, muito trabalhadas. Cultivavam a brevidade e gostavam do pormenor e do perfeccionismo, realçados por novas criações vocabulares.

No caso de Catulo, entre os seus poemas longos, as suas três elegias (65, 66 e 68) bem como os poemas 63 sobre Attis e 64 sobre as bodas de Tétis e Peleu são directamente inspirados pela escola de Alexandria.

O legado de Catulo

Apesar de a sua obra se ter quase perdido e ser quase totalmente desconhecida durante a maior parte da Idade Média, a influência de Catulo foi enorme, para além na influência mais imediata que teve sobre os poetas romanos que lhe sucederam, como é o caso de Horácio ou Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), por exemplo.

A originalidade Catulo na paisagem da poesia latina provém, talvez, da franqueza com que fala dos seus estados de alma seja sobre as suas relações pessoais, seja sobre o seu tempestuoso relacionamento com Lésbia. É, como disse Américo da Costa Ramalho “uma das vozes mais genuínas de toda a poesia de Roma”.

quarta-feira, 5 de abril de 2006

Catulo - Parte I

Como prometido quando escrevi sobre Vergílio, passo agora a escrever sobre Catulo, um dos meu poetas preferidos. Hoje é a primeira parte, a sua biografia, ficando para amanhã a sua obra.

Introdução

Catulo foi um dos mais importantes poetas latinos do final da República, que influenciou muitos poetas romanos que se lhe seguiram, como Ovídio, Horácio ou Vergílio. Pertenceu a um círculo de poetas que romperam com a tradição romana da época, o que lhes valeu o epíteto, com conotações negativas, de poeta noui. Depois da queda do império, só no início do séc. XIV é que foi encontrado um exemplar completo da recolha dos seus poemas (apesar de Isidoro de Sevilha, séc. VII, nas suas Origines, ter citado um texto de Catulo). A partir daí a sua influência voltou a sentir-se sendo, actualmente, a sua obra amplamente estudada.

Biografia

Apesar da sua importância como poeta, pouco se sabe da vida de Catulo. A sua biografia terá sido feita por Suetónio em De Viris Illustribus, entre os poetas latinos, mas esta obra não chegou até nós. Assim, a maior parte daquilo que sabemos é pelas notas autobiográficas nos seus poemas.

Acredita-se, apesar de não haver certezas, de que terá nascido em Verona ou, pelo menos, perto de Verona, na Gália Cisalpina no seio de uma família nobre e rica em 87 – 84 a.C. As fontes antigas, por exemplo, Ovídio (Amores, 3. 15. 7) e Marcial (Epr., 14. 195) referem Verona como local de nascimento. O seu pai recebia César em casa quando este passava por Verona. No entanto, terminada a infância, encontramo-lo, muito jovem já fixado em Roma. Aí, moveu-se num meio culto onde encontrou, entre outros o historiador Cornélio Nepos e o gramático Valério Catão.

A sua vida em Roma foi muito agitada no meio da alta sociedade romana, onde conheceu muita gente importante do seu tempo, tendo mesmo incompatibilizado com alguma destas pessoas, tendo, por exemplo, versos violentos contra Júlio César (que no entanto se reconciliou com ele). Também Cícero foi visado por Catulo (o sentimento era recíproco, Cícero não gostava dos poeti noui).

Sabemos ainda que em 57 a.C. acompanhou o seu amigo Mémio à Bitínia, onde Mémio tinha recebido o cargo de governador. Todavia, em 56 a.C., Catulo voltou para Roma. Esta foi a única vez que se envolveu em política na sua vida. Enquanto esteve no Oriente, aproveitou para visitar o túmulo de um seu irmão mais velho, perto de Tróia, que tinha morrido uns anos antes e cujo desgosto de Catulo ficou bem expresso num dos seus poemas (101).

Também da sua biografia consta a sua relação com Lésbia. Esta relação é talvez o maior acontecimento da sua vida e, por isso, amplamente retarda na sua poesia. Lésbia é, calor está, um pseudónimo (cf. Ovídio, Tristia, 2. 427-428). Segundo a interpretação tradicional (cf. Apuleio, Apol. 10) o seu verdadeiro nome era Clódia, uma das três irmãs de P. Clódio Pulcher, casada com Q. Metelo Célere (que morreu em 59 a.C., envenenado pela mulher segundo as más línguas) e que foi cônsul em 60 a.C.

Depois da morte de Metelo, Clódia teve vários amantes. Cícero no seu Pro Caelio, um discurso judiciário (56 a.C.) em defesa de M. Célio Rufo, ex-amante de Clódia que foi acusado por esta de a querer envenenar, faz dela um retrato cruel. A relação entre Catulo e Clódia foi, a acreditar nos poemas que lhe são dedicados (uns de grande delicadeza, outros bastante ofensivos), bastante conflituosa.

Catulo teve uma vida curta, pois terá morrido entre 54-52 a.C.

quarta-feira, 1 de março de 2006

Vergílio Ferreira

Faz hoje dez anos que morreu Vergílio Ferreira (obrigado ao Francisco por se ter lembrado disso). Para mim, e é apenas a minha opinião, Vergílio Ferreira escreveu um dos melhores romances portugueses dos últimos 50 anos: Para Sempre.

Só não digo que é o melhor porque, muito naturalmente, não li toda, nem sequer uma parte substancial, da ficção portuguesa desse período de tempo - embora tenha lido bastante, há muito coisa que ficou por ler (e nos últimos tempos tenho lido pouca ficção em prosa, virei-me mais para a linguística e a poesia).

«Pela clareira da porta, vejo-o, o senhor Paixão está sozinho à mesa, tem os olhos baixos. Está concentrado aplicado, é um trabalho minucioso, aplicado ao manejo do talher, nem nos olha. Estamos os dois alinhados e eu tenho a tigela ofertada nas duas mãos. Então o senhor Paixão ergeu os olhos
- Está aqui o Paulinho, Carlos, trouxe-te uma marmelada
ergeu os olhos para nós. Eram uns olhos congestionados de uma paixão que o convulsionava por dentro, tinha uma cabeleira fulva alteada na fronte e aos anéis. A senhora Guilhermina, um sorriso grande abrindo lentamente pelas gengivas todas e depois disse em voz abafada
- O senhor Carlos Paixão
e eu estava ali com a marmelada. Os três fitados uns nos outros, o senhor Paixão sério, os olhos ardentes de uma devoração interior. Depois estendeu as duas mãos para mim, tomou-me a tigela, colocou-a na mesa, um pouco de lado, suspendendo-a brevemente em quatro dedos litúrgicos. Por uma ponte ergeu devagar o papel vegetal, olhava intenso, o olho em fogo, a senhora Guilhermina mudou-lhe o prato subtilmente. Ele então cortou uma pequena película de marmelada, estendeu-a sintética no prato. Ficou assim a olhá-la algum tempo, nós agurdávamos. Sobretudo a senhora Guilhermina - que iria o filho dizer? E ele disse
- Um pouco escura
e ficámos à espera de mais. Estávamos todos em silêncio, o senhor Paixão concentrado como se fosse comungar, murmurou ainda
- Em fins de Setembro
deve-se colher o marmelo em fins de Setembro. Deve-se colher quase maduro. Não ficar muito tempo ao lume. Não se expor ao ar.
Depois retirou uma partícula do prato, levou-a à boca devagar. A boca remoía a partícula, tentava extrair-lhe a essência oculta do sabor. E por fim engoliu-a já sem vida, como quem enterra um morto.
- Pouco saborosa. Pouca acidez. Não se deve cozer o marmelo em água, mas em vapor. Mãe, o café.»
Vergílio Ferreira, Para Sempre, 10.ª ed., Bertrand Editora, pp. 58-59